“O transporte marítimo está prestes a mudar de forma abrupta e quem não se adaptar fica fora do negócio”, afirmou o engenheiro naval e administrador da empresa de tecnologias navais Tecnoveritas, Jorge Antunes, durante um debate sobre propulsão naval promovido pelo Jornal da Economia do Mar na Escola Superior Náutica Infante D. Henrique (ENIDH). Num contexto internacional de procura de mais eficiência energética no transporte marítmo e energias limpas no mar, que levarão a profundas alterações no transporte marítimo, a propulsão dos navios é um dos factores sujeito a maior investigação e aplicação de recursos. Mas não é o único, até porque, conforme salientou outro orador interveniente no debate, Pedro Ponte, engenheiro naval e membro da Administração dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra, os navios “devem ser vistos como um todo”, em que a propulsão é apenas um dos factores envolvidos na sua eficiência energética e não deve ser vista isoladamente. Além disso, Pedro Ponte considera que mais do que a propulsão, “o que está actualmente em causa é a eficiência energética”, independentemente de ser por essa via ou por novas soluções ao nível do combustível, do casco, da pintura, da iluminação de bordo ou da dinâmica do navio. E está em causa, não só para o transporte marítimo, que responde por 3% das emissões globais, mas para todos os modos de transporte, o que torna a rodovia e a ferrovia beneficiários potenciais das soluções encontradas na indústria naval.
Contexto difícil
Esta adaptação a um futuro ainda incerto, porém, está a fazer-se num quadro complexo e difícil, quer no plano técnico, quer no económico. Por um lado, o Acordo de Paris de 2016 sobre o ambiente veio expor e consolidar a necessidade de compromissos no plano ambiental, ainda que sem referências expressas ao transporte marítimo. No entanto, tanto no âmbito da Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla em inglês), como no da União Europeia (UE), ou mesmo no de outras instâncias internacionais, numerosa legislação foi sendo desenvolvida no sentido de diminuir as emissões do transporte marítimo para a atmosfera, nomeadamente, de dióxido de carbono (CO2), óxido de enxofre (SOx) e óxido de azoto (NOx), e que adquire nova força depois do Acordo de Paris. Entre as regras mais recentes e com maior impacto no sector está a obrigação de reduzir o teor de enxofre nos combustíveis marítimos a um limite de 0,5% até 2020, definida na IMO em 2016. Em Setembro deste ano, por outro lado, entrará em vigor a Convenção Internacional para o Controlo e Gestão das Águas de Lastro e Sedimentos de 2004 (International Convention for the Control and Management of Ships’ Ballast Water and Sediments, ou BWM Convention). Além disso, importa recordar a existência de zonas ECAs (Emissions Control Areas), nas quais os limites do teor de enxofre e azoto nos combustíveis marítimos já são mais restritivos do que na generalidade dos mares. A própria China definiu recentemente zonas semelhantes nas suas águas, algo impensável até há poucos anos. No debate da ENIDH, Pedro Ponte recordou ainda as medidas sobre registo de emissões dos navios, propostas pela IMO, ”que pretende esse cadastro em circuito fechado”, e pela Comissão Europeia (CE), “que confere mais transparência a essa informação”. E muitas outras orientações estão em discussão nestes e noutros fóruns.
Nem todas estas orientações são pacíficas ou isentas de dificuldades. Para Jorge Antunes, por exemplo, “o Ocidente não está preparado para produzir gasóleo com os requisitos impostos pela IMO em quantidade suficiente, por inadaptação das refinarias”, até 2020. Uma realidade já adiantada pela BIMCO, uma associação internacional ligada ao transporte marítimo, que a par da quantidade, colocou dúvidas sobre a qualidade e a segurança desse tipo de combustível. Mas a este quadro, Jorge Antunes juntou outros dados de contexto: se em 2010 eram emitidas 650 milhões de toneladas de CO2, em 2050 esse valor deverá ser de 1,4 mil milhões de toneladas; a eficiência energética de um navio é de 30%, o que significa que 70% da energia gerada a bordo é desperdiçada e devolvida ao ambiente, “e um porta-contentores com muitos contentores refrigerados no convés ainda é menos eficiente sob esse ponto de vista”; já existe tecnologia para reduzir as emissões de CO2 em qualquer navio, “mas os armadores dizem que estão falidos e não investem nisso”.
Neste contexto, que envolve muitas outras variantes, a propulsão eléctrica e a gás natural liquefeito (GNL) foram os temas principais do debate, reflectindo o elevado grau de envolvimento do próprio sector nestes dois modelos de soluções.
A propulsão eléctrica
Dores Costa, docente e dirigente da ENIDH, orador no debate, procurou dessacralizar a propulsão eléctrica, simplificando o conceito. “É só um motor eléctrico a accionar o hélice, no lugar de uma máquina convencional”, referiu. Mas foi recordando que o motor eléctrico requer electricidade. “E como obtê-la?”, questionou. Depois de uma explicação técnica, concluiu que “a propulsão eléctrica não afasta os problemas ambientais”, sem prejuízo de ter diversas vantagens, como a manobrabilidade e a libertação de espaço. Mas considerou que só “a electrónica de potência é que torna a propulsão eléctrica competitiva”, embora, mais uma vez, nem essa seja isenta de complexidades, porque gera correntes harmónicas, que são deformações das tensões e correntes eléctricas nas ondas. Já António Carvalho, responsável pelas soluções marítimas da Siemens em Portugal e também presente no debate, considera que “o armazenamento da energia é o calcanhar de Aquiles” desta solução. E nesse sentido recordou que tem sido feita pesquisa nessa matéria, visando obter “baterias, de peso reduzido e preço aceitável”, notando que “é nesse sentido que a propulsão eléctrica caminha”. Jorge Antunes sustenta que a “electricidade será a forma como a potência vai chegar ao veio, mas o propulsor continuará a ser o hélice, eventualmente ultrapassada pela propulsão magnética dinâmica”.
Uma das questões colocadas pela propulsão eléctrica é do abastecimento dos navios a partir de uma estação terrestre e da tecnologia que isso implica, o chamado short side power (SSP). Para a definição deste modelo, há que ter em conta o tipo de navio que escala o porto, o tipo de operação do navio, se opera com meios de bordo, entre outras variantes. O SSP “permite desligar os geradores quando um navio está em porto, mas se recorrermos a uma central térmica para esse abastecimento, não emitimos a partir do navio, mas emitimos a partir da central térmica”, esclareceu Pedro Ponte, admitindo que existem navios “que não estão preparados para este tipo de abastecimento” e que já existe uma norma ISO que harmoniza este tipo de solução. Normalmente, em portos próximos de cidades, “é desejável que as emissões no porto sejam reduzidas e que os navios possam desligar os seus geradores”, provocando o menor impacto possível nas comunidades. “Mas este tipo de solução deve ser visto caso a caso”, explicou o administrador portuário. Em todo o caso, não será uma solução adequada para os grandes navios. Dores Costa não imagina “os grandes navios a atracarem para serem abastecidos por terra, até porque requerem um volume de energia equivalente ao necessário para uma pequena cidade”, sugerindo um problema de dimensão dos navios para estas soluções. Esta questão remete para os chamados Green Ports, “que são muito mais do que o abastecimento dos navios em terra”, esclarece Pedro Ponte.
O GNL e o hidrogénio
No actual contexto regulador e de sustentabilidade ambiental, o GNL é considerado entre vários especialistas o próximo combustível marítimo por excelência. Jorge Antunes, porém, alerta para o facto de isso suceder “enquanto o hidrogénio não ocupar esse lugar”, pelo que reconhece o GNL como “uma tecnologia de transição” no shipping. Mas recorda que “a aprendizagem que vamos fazer com o GNL será boa, até porque o GNL polui um terço do CO2”. Há quem entenda, porém, que existe muito desconhecimento sobre esta tecnologia. “Desconhecem-se os abastecimentos e os riscos que podem verificar-se a bordo”, referiu Pedro Ponte. Riscos que foram discutidos em Dezembro, na European Maritime Safety Association (EMSA), em Lisboa, à escala europeia. O administrador portuário notou que o GNL, no entanto, pode vir a ser “um combustível competitivo e interessante para abastecer os transportes em geral e não só o transporte marítimo”. A UE, aliás, no âmbito do seu mecanismo de financiamento Connecting European Facilities (CEF), definiu que o GNL deve ser uma realidade, inicialmente nos portos core, que movimentam mais de 10 milhões de toneladas/ano de mercadoria, e depois nos meios de transporte em geral. O GNL representa, além disso, uma solução de continuidade na indústria dos combustíveis, que tem vindo a fazer investimentos nessa área. No entanto, há quem entenda que a queda no preço do crude, a falta de enquadramento legislativo adequado, as questões do seu armazenamento ou o facto de ser metano, podem ter retardado em dez anos a sua utilização generalizada no transporte marítimo.
O hidrogénio, todavia, é a solução que mais convence Jorge Antunes. “É a única forma de resolver isto sem emissões de carbono”, salientou. Mas terá que ser um hidrogénio verde ou produzido em central nuclear. E recorda que o hidrogénio “não é um combustível, é um vector energético, ou seja, é aquilo que permite levar a energia para bordo do navio”. Trata-se de um gás que arde como resultado da sua combustão produzindo zero CO2 e a sua tecnologia no transporte marítimo é semelhante à do gás natural. Noutra ocasião, o engenheiro naval recordou que nesta matéria, “a grande linha de investigação é a do armazenamento do hidrogénio em estado líquido”.
Os rebocadores e os ferries
Se no caso de navios como os ferries, a propulsão eléctrica merece pouca discussão, como nos referiu António Carvalho, devido a seu trajecto geralmente bem definido, com tempos de paragem e percursos conhecidos, já no caso dos rebocadores essa solução não é tão simplista, bem como a do GNL, que desperta controvérsia.
António Carvalho recordou o caso do Ampere, o primeiro ferry com sistema propulsor totalmente eléctrico, encomendado à Siemens. Explorado pela Norled, é um navio Ro-ro e de passageiros, entregue em 2015. Depois disso, a Siemens recebeu outra encomenda para um sistema propulsor integralmente eléctrico para um ferry, a entregar no Verão deste ano.
A empresa de cruzeiros fluviais Douro Azul também está a apostar na propulsão eléctrica. Conforme referiu Hugo Bastos, gestor de frota da empresa e um dos oradores do debate, “a Douro Azul fez investimentos elevados nessa matéria. Num dos nossos cais base investimos 350 mil euros para podermos ter seis navios hotéis atracados em Gaia com os geradores desligados e alimentação eléctrica”, adiantou.
Igualmente presente no debate, José Costa, Director Geral da operadora de rebocadores Rebonave, considerou que a propulsão eléctrica “talvez faça sentido” numa das modalidades de rebocadores, os que operam em porto e no caso em que sejam híbridos (com um grupo de baterias e um grupo de motores). Nestes casos, “existem momentos em que os rebocadores precisam de usar toda a sua potência e outros em que não precisam de quase nenhuma” e nessas situações talvez faça sentido um motor eléctrico, “com baterias carregadas num momento em que o motor diesel tiver sido necessário e estado a debitar potência para a execução de uma manobra”, considerou. Já no caso dos rebocadores oceânicos, “a necessidade de potência é contínua e a solução eléctrica ou híbrida não é tão adequada”, admite o mesmo responsável.
No caso do recurso ao GNL em rebocadores, Jorge Antunes considera absurdo o financiamento da conversão deste tipo de navios, que normalmente usam combustível convencional, para o GNL. “Se o navio não tem serviço, o gás começa a ferver” e despoleta a válvula de segurança, emitindo para a atmosfera. Pedro Ponte defende que as experiências, mesmo as de GNL em rebocadores, são ensinamentos que valem enquanto tal.
Entretanto, vários especialistas entendem que os navios híbridos ganharam força. Neste caso, os navios ideais são os supply vessels, de apoio a infra-estruturas offshore, que se mantêm por muitos dias sem fundear com recurso a meios próprios.
Formação
Na qualidade de docente da ENIDH, palco do debate, Dores Costa enfatizou o papel da instituição na formação de profissionais sensíveis às questões ambientais, incluindo em matéria de propulsão. “Os profissionais do mar são os primeiros a saber o que fazer nesse meio para respeitarem o ambiente”, declarou.
José Costa também valorizou a formação na sustentabilidade. “Existem comportamentos que não relação directa com a tipologia da fonte da energia que podemos estar a utilizar, mas que podem ser tão ou mais importantes do que a fonte energética “, referiu. E acrescentou que “mesmo usando uma máquina de combustão convencional, podemos poluir mais ou menos conforme adoptemos ou não boas práticas”.
Dores Costa destacou igualmente o papel da formação em aspectos específicos cada vez mais relacionados com a propulsão, designadamente a eléctrica. Considerando que esta é indissociável da existência de sistemas de alta tensão a bordo, considerou importante “formar pessoas nesta matéria” para prevenir questões de segurança no trabalho, ou seja, a bordo.
Por seu lado, Hugo Bastos prestou um elogio à engenharia portuguesa, ao admitir que a mesma está presente nas alterações de sistemas que a sua empresa está a fazer nos seus navios. Mas deixou uma crítica ao Estado, relacionada com a falta de recursos humanos numa entidade pública e que afecta directamente o transporte marítimo.
Na ocasião, referiu que a Direcção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM) carece, ““há mais de um ano, de um único especialista para licenciar qualquer tipo de instalação ou alteração eléctrica de um único navio em Portugal”. Uma realidade que faz com que actualmente Portugal não disponha de ninguém “habilitado pela bandeira do Estado que diga se posso alterar electricamente um navio”, referiu.
Como a sua empresa vai receber “um navio novo em Fevereiro, outro em Março e outro em Abril sem ninguém em Portugal para aprovar isto, da nossa bandeira”, será necessário recorrer a uma solução alternativa, “à portuguesa, mas em que o Estado fica mal na fotografia”, referiu, porque revela falta de capacidade do país para contratar um engenheiro em nome da bandeira.
Um comentário em “Propulsão naval em debate”
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Caros amigos os motores de igniçao por compressão não necessitam de hidrogénio limpo. Quem precisa de hidrogênio limpo e caro são as células ou pilhas de combustível o que torna hidrogênio muitíssimo mais caro.