Sabemos que este mundo de contingência em que vivemos é, como diria Aristóteles, o mundo da «geração e corrupção», ou, na sempre tão sugestiva tradução inglesa, «on coming-to-be and passing away».

Sabemos isso, como quem leu Aristóteles, Séneca ou Cícero tão bem sabe também a importância e o valor da amizade e como a amizade se firma na juventude pelos gozos dos prazeres da vida, na idade adulta pelo interesse e na madura idade pelo intelecto e na mais independente e desinteressada busca na compreensão do Mundo e de quanto o Mundo e o Universo é e significa.

Todos sabemos isso como todos sabemos a impossibilidade de nos pensarmos sem imediatamente pensarmos as verdadeiras amizades que ao longo da vida vamos tendo e sem as quais nunca viríamos a ser exactamente os mesmos que viemos a ser e, de algum modo, vamos sendo.

Por isso mesmo, mesmo sabendo como diria Pessoa, «ser a morte apenas como uma curva, deixar, simplesmente, de ser visto», a partida de um amigo é sempre terrível _ ainda que sempre fique também a paradoxal satisfação de algo muito mais terrível que podia ter podido vir a suceder não ter sucedido, como seja, a possibilidade dessa mesma amizade nunca ter acontecido.

E ele há estranhas e muito singulares mas não menos reais amizades…

Em termos pessoais, apenas nos cruzámos uma única vez, no final da I Grande Conferência do Jornal da Economia do Mar, mas, mais recentemente, quando lhe ligámos para tratarmos algumas questões inicialmente relacionadas com Moçambique, foi como sucede com os amigos que não se vêem há muito, i.e., passados uns muito breves primeiros momentos a conversa como que assume ritmo próprio como se simples retomar de um tão velho quanto permanente diálogo nunca interrompido.

Sem querermos fingir mimetizar a conhecida história da apresentação de Teixeira de Pascoaes a Leonardo Coimbra quando, perante a retórica pergunta de quem procedia à respectiva introdução, «não sei se conhece o Dr. Leonardo Coimbra…», logo o Poeta do Saudosismo, dando um passo atrás, olhando fixamente o autor d’«A Alegria, a Dor e Graça», respondeu simplesmente: «Sim, desde o princípio do Mundo…», é compreensível que assim tenha sido uma vez que uma mesma consciência  da importância do Mar para Portugal, como para Moçambique e para a afirmação da CPLP, como uma mesma preocupação pela inconsciência dos nossos políticos dessa mesma importância do Mar para Portugal, como para Moçambique, a CPLP e o futuro, bastaria tudo o mais unir.

Se a amizade, a verdadeira amizade, se firma na comum luta contra o mal, também se afirma na comum luta contra os «males» ou o que se entende que está mal.

Percebemos que estava no Porto, o que facilitava o contacto que, a partir desse momento passou a ser, se assim podemos dizer, regular e permitiria virmos a iniciar as nossas tão importantes quanto mais significativas «Conversas sobre Moçambique, o Índico e o Indopacífico» como, esperamos todos terão devidamente atendido, mas só muito mais tarde viemos a saber, através do mesmo terceiro amigo que nos havia inicialmente apresentado, estar no Porto por razões de saúde, assim como pelo mesmo amigo viemos igualmente a saber não apenas ter sido preso às ordens das Forças da Frelimo mas ter sido, inclusivamente, barbaramente torturado pelas mesmas ao longo do seu cativeiro.

Mas o mais extraordinário quanto revelador do seu carácter foi a sua reacção quando o mencionámos, uma vez que, passado um primeiro sorriso pela surpresa do nosso conhecimento de tal facto, tudo confirmando e relatando então, com a mesma independência de alma, distância e objectividade como se tão só de mais uma das nossas habituais conversas sobre «Moçambique e a Nova Maritimidade de África» se tratasse, sem que, em momento algum, se pressentisse o mínimo ressentimento ou, menos ainda, qualquer impensável sede de eventual possível desforço, o que se percebia era uma indizível mágoa por ver a sua nação, Moçambique, tão cheia de virtuais potencialidades, caída e a desfazer-se sob o mais tirânico, corrupto de despótico  desgoverno.

O curioso é que, não deixando de ser, e sendo, profundamente Moçambicano, também era profundamente Português, exemplo perfeito de quanto ser Português mais alto e mais verdadeiramente realmente significa, assim como como perfeito exemplo de como «uma visão no Estado não significa necessária cisão na Pátria», como perfeita consciência disso também.

Ou seja, se no lançamento do projecto do Jornal da Economia do Mar lembrávamos Dalila Pereira e as suas palavras quando, n’«O Esoterismo de Fernando Pessoa», referia aquele espécie de «identificação noética do poeta da Ode Marítima, como de todos os grandes verdadeiros Portugueses, com o destino da própria Pátria», o mesmo poderíamos dizer de Jorge Silva.

Por isso mesmo também a sua tão séria quão profunda preocupação Geopolítica e Geoestratégica com o mundo.

Revendo as Conversas sobre «Moçambique e a Nova Maritimidade de África» percebe-se não apenas a intuição, não apenas a sempre mais completa e actualizada informação mas, acima de tudo, uma tão extraordinária quanto singular e talvez mesmo única capacidade para saber entrelinhas _ afinal, a mais perfeita definição de verdadeira inteligência também.

E em todos os momentos, uma sempre a mesma preocupação tanto com o futuro de Moçambique como com o futuro de Portugal e das gentes de ambas as Nações Lusófonas pelas quais verdadeiramente era.

Sem as suas sábias palavras, sem seus singulares dotes de acertada prospectiva, sem a luz da sua visão, tudo no mundo se nos afigura mais turvo, mais sombrio e mais difícil de perspectivar…

Lá vem a Nau Catrineta

Que tem muito que contar!

Ouvide agora, senhores,

Uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia

Que iam na volta do mar,

Já não tinham que comer,

Já não tinham que manjar.

Deitaram sola de molho

Para o outro dia jantar;

Mas a sola era tão rija,

Que a não puderam tragar.

Deitaram sortes à ventura

Qual se havia de matar;

Logo foi cair a sorte

No capitão general.

– “Sobe, sobe, marujinho,

Àquele mastro real,

Vê se vês terras de Espanha,

As praias de Portugal!”

– “Não vejo terras de Espanha,

Nem praias de Portugal;

Vejo sete espadas nuas

Que estão para te matar.”

– “Acima, acima, gageiro,

Acima ao tope real!

Olha se enxergas Espanha,

Areias de Portugal!”

– “Alvíssaras, capitão,

Meu capitão general!

Já vejo terras de Espanha,

Areias de Portugal!”

Mais enxergo três meninas,

Debaixo de um laranjal:

Uma sentada a coser,

Outra na roca a fiar,

A mais formosa de todas

Está no meio a chorar.”

– “Todas três são minhas filhas,

Oh! quem mas dera abraçar!

A mais formosa de todas

Contigo a hei-de casar.”

– “A vossa filha não quero,

Que vos custou a criar.”

– “Dar-te-ei tanto dinheiro

Que o não possas contar.”

– “Não quero o vosso dinheiro

Pois vos custou a ganhar.”

– “Dou-te o meu cavalo branco,

Que nunca houve outro igual.”

– “Guardai o vosso cavalo,

Que vos custou a ensinar.”

– “Dar-te-ei a Catrineta,

Para nela navegar.”

– “Não quero a Nau Catrineta,

Que a não sei governar.”

– “Que queres tu, meu gageiro,

Que alvíssaras te hei-de dar?”

– “Capitão, quero a tua alma,

Para comigo a levar!”

– “Renego de ti, demónio,

Que me estavas a tentar!

A minha alma é só de Deus;

O corpo dou eu ao mar.”

Tomou-o um anjo nos braços,

Não no deixou afogar.

Deu um estouro o demónio,

Acalmaram vento e mar;

E à noite a Nau Catrineta

Estava em terra a varar.

(Recolhido por Almeida Garrett)



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