Conforme falado na edição anterior do Jornal vamos abordar o tema dos locais de refúgio, na decorrência do tema das operações marítimas que terminámos.
Comecemos por definir locais de refúgio. A Directiva 2002/59/CE do Parlamento Europeu e do Conselho no artigo 2° alínea m) define como: “um porto, parte de porto ou outro espaço para manobrar ou fundeadouro de protecção, ou qualquer outra área de refúgio identificada por um Estado–Membro para acolher navios em perigo.”
Os locais de refúgio situam-se sempre (ou quase sempre) em águas interiores, espaço marítimo do qual os Estados possuem poderes soberanos. Pelo que a autorização do Estado Costeiro para navegar nesse espaço é sempre necessária. Nem o direito de passagem inofensiva nem o de passagem em livre trânsito assistem aos navios e embarcações estrangeiras em águas interiores.
Nas Regras de Yorque-Antuerpia a expressão local de refugio refere-se a uma realidade associada à segurança da navegação e à protecção do ambiente e essa a prespectiva actual e que vamos falar aqui hoje.
A Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (Montego Bay 1982- CNUDUM) estabelece que o acesso aos portos de determinado Estado por embarcações estrangeiras está sujeito a condições estabelecidas pelo próprio Estado costeiro, que tem “o direito de adoptar as medidas necessárias para impedir qualquer violação das condições a que está sujeita a admissão desses navios nessas águas interiores ou nessa instalação portuária“.
Como funciona? Os navios enviam uma notificação prévia da visita por via diplomática e aguardam que o seu acesso ao porto seja autorizado para efectuar a carga ou descarga de mercadorias.
No caso de arribada forçada o Estado tem como regra o dever de receber a embarcação e prestar auxílio em prol do comércio internacional que é feito maioritariamente por mar. Todo o navio que estiver com problemas relativos à navegação deve procurar o porto mais próximo ou conveniente e arribar a fim de solucionar o problema que estiver a inviabilizar a meia navegação.
Contudo, os países nem sempre autorizam a arribada de um navio em dificuldades. Diversas vezes não é autorizada a entrada nas águas interiores e portos por razões de interesse nacional e salvaguarda e protecção do meio ambiente se a embarcação em perigo colocar em risco o Estado costeiro. Por exemplo navios com propulsão nuclear ou transportando substância radioactivas ou transporte de hidrocarbonetos que estejam em perigo devido a uma avaria ou abalroamento. Não existe qualquer direito de acesso aos portos para estes navios.
No que se refere pelo contrário a acidentes que envolvam vidas humanas em perigo, entrada de navios em águas interiores é sempre autorizada (Convenção Internacional sobre Busca e Salvamento Maritimo).
O mesmo já não acontece se por exemplo se tratar de situações de peste ou epidemia. Aí o Estado costeiro já poderá não autorizar a entrada desse navio no porto e águas interiores.
Em suma, os Estados exercem suas jurisdições nos casos em que algum facto ocorrido venha a afectá-lo de alguma maneira, é o Estado que define se esse facto o afecta dentro do seu poder discricionário (Robin Rolf Churchill e Alan Vaughan Lowe).
Dito de maneira inversa quando ocorre uma situação dentro do navio que não afecte de nenhuma maneira o país ribeirinho este abdica de sua competência jurisdicional em favor da legislação do Estado de bandeira da embarcação.
Não esquecer que os Estados Costeiros exercem a sua competência jurisdicional nos navios estrangeiros em assuntos como por exemplo poluição, leis de pilotagem e navegação e em situações de arresto de navios no curso de um processo civil do Estado Costeiro. Fora desses casos os Estados não exercem a sua competência em relação aos assuntos internos dos navios estrangeiros nos seus portos e têm o direito de o fazer por causa da entrada desses navios na sua competência territorial.
De facto um navio que enfrenta uma tempestade ou é perseguido por piratas pode arribar num porto ou baía sem ocasionar problemas ao Estado costeiro mas pelo contrário um navio avariado pode causar um desastre ambiental.
Há portanto uma articulação que é necessário fazer entre a segurança da navegação e a tutela do ambiente marinho.
Existem três teorias nesta problemática dos locais de refúgio:
1ª- Direito de acesso irrestrito aos portos baseados no direito consuetudinário;
2ª- Total soberania dos Estados tendo estes o direito absoluto de recusar receber navio que coloque em perigo o seu território;
3ª- Avaliação ad hoc do caso em questão fazendo uma ponderação entre os bens jurídicos tutelados para que o Estado possa tomar uma decisão legítima.
Embora a 3a teoria seja aquela que faz mais sentido a verdade é que existe o risco de o Estado estar sempre inclinado a recusar o navio, visto ser juiz e parte do processo de decisão mas por outro lado não podemos retirar esse poder ao Estado costeiro de ser ele a decidir sobre o seu próprio território.
Na prática contudo tem-se verificado que a recusa dos Estados costeiros em receber os navios em perigo tem tido efeitos desastrosos para o meio ambiente marinho em geral. Veja-se a título de exemplo o caso do Castor: em 2000 o navio navegava no Mediterrâneo pediu para entrar nas águas de cinco Estados mediterrâneos para fazer o transbordo de carga de gasolina e foi sempre recusado. Teve por isso de ser rebocado para o Alto Mar para se fazer o transbordo e quase que originou um desastre ambiental.
Mais recente ainda foi o caso do Prestige que originou um desastre ambiental e que talvez pudesse ter sido evitado se o navio tivesse sido recebido num porto ou lugar de refúgio para ser retirada a carga perigosa.
Mas não podemos esquecer que os Estados nas suas tomadas de decisão de decidir ou recusar a entrada de navio em perigo estão a ponderar os três elementos essenciais: a segurança da navegação, a tutela do ambiente marinho e os interesses nacionais e que acima de tudo são livres e soberanos na sua tomada de decisão mas limitados às informações que têm disponíveis no momento das suas decisões.
Depois do outro lado existe também a questão da responsabilidade Oliveira Coelho entende que: “uma das formas de equacionar a responsabilidade pelos danos ocorridos nos casos de Erika ou do Prestige é a de entender que as catástrofes em que intervieram talvez pudessem ter sido evitadas se as autoridades portuarias tivessem permitido que entrassem em portos nos quais teria sido possível descarregar em segurança o crude transportado e, em seguida, às reparações que obviassem ao derramamento dos hidrocarbonetos, permitindo, assim, a continuação em segurança da sua navegação. ” E: “ao deixar os navios no mar em plena tempestade, sempre a partir de tal ponto de vista, tais entidades deram um forte contributo para que uma situação, já de si muito grave, se convertesse em catástrofe“. (in “Poluição marítima por hidrocarbonetos e responsabilidade civil”).
E como a nossa lei interna vê a questão da problemática dos locais de refúgio? Quando o Estado deve permitir a entrada de um navio em perigo? Falou-se aquando da definição de locais de refúgio na Directiva 2002/59/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, esta directiva preconiza a instituição de um sistema comunitário de acompanhamento e de informação de tráfego de navios e foi transposta para o direito interno português pelo Decreto-Lei n° 180/2004, de 27 de Julho.
São ali estabelecidas regras relativas à instituição, no território nacional, de um sistema de acompanhamento e de informação do tráfego de navios com vista a aumentar a segurança e a eficácia do tráfego marítimo, melhorar a resposta das autoridades a incidentes, acidentes ou a situações potencialmente perigosas no mar, incluindo operações de busca e de salvamento, e contribuir para uma melhor prevenção e detecção das poluições causadas pelos navios.
O artigo 19° do Decreto-Lei respeita especificamente aos locais de refúgio e remete para uma posterior elaboração de planos de acolhimento de navios em dificuldade que são objecto de aprovação em Resolução do Conselho de Ministros (artigo 19° n° 3). Nesses planos é definida a entidade ou entidades responsáveis pela decisão de permitir a entrada ou não de um navio num local, as disposições e os procedimentos necessários, tendo em conta as restrições de ordem operacional, de segurança e ambiental.
Portanto as decisões são tomadas caso a caso articulando a segurança maritima, ambiente e interesse nacional.
No âmbito da Organização Maritima Internacional (OMI) foi adoptada a Resolução A.949 (23) em 2003 com orientações sobre locais de refúgio para navios que necessitem de assistência. Nesta resolução a OMI orienta os Estados a criarem um local destinado a acolher embarcações em perigo. As orientações reconhecem que, quando um navio sofreu um acidente ou incidente, a forma mais eficaz de prevenir danos é a transferência da carga e/ou reparação das avarias, e essa operação é melhor realizada em um local de refúgio.
A questão maior neste tema é sem dúvida a responsabilidade do Estado pelas consequências que ocorram da decisão de receber ou recusar um navio em perigo. Não existe nenhum acordo internacional que regule esta matéria, pelo que apenas as leis internas de cada país e em muitos casos nem sequer existe lei interna nesta matéria.
Questão: Podemos responsabilizar um Estado pela decisão de não permitir a entrada de navio em perigo e em consequência disso ter surgido um desastre ambiental? Não estamos a pôr em causa a soberania dos Estados ao colocar em julgamento a decisão de não ter acolhido um navio em perigo? Sim estamos.
A CNUDUM no artigo 235° em matéria de responsabilidade dos Estados em matéria de poluição do meio marinho: deve o direito internacional e através do direito interno, assegurar meios para responsabilizar, reparar e indemnizar sempre que ocorrer algum dano ao ambiente marinho. A Convenção fala apenas em: “cumprimento das suas obrigações internacionais relativas à protecção e preservação do meio marinho”.
A Comunidade Internacional defende a figura da compensação financeira para a utilização dos locais de refugio. Esta ideia é fundamentada no artigo 7° da Convenção Internacional sobre responsabilidade civil em danos causados por poluição por Hidrocarbonetos (Bruxelas-1969), para exigir uma garantia financeira de todas as embarcações que naveguem em território nacional-águas interiores- e transportem qualquer derivado de óleo.
Faz sentido que exista uma lei interna que exija uma garantia financeira para os casos de assistência em locais de refúgio, devendo o proprietário do navio, operador ou carregador do navio prestar essa garantia económica em caso de dano ao meio marinho que venha a ocorrer. O montante dessa garantia deveria de ser definido caso a caso mediante critérios objectivos quanto ao tipo de navio, quantidade de produtos transportados, estado do navio e grau provável ou possível de dano ao meio ambiente.
Por último não podemos confundir o tema dos locais de refúgio aqui abordado com o dever de assistência, uma vez que este último o dever de prestar assistencia ou socorro trata-se de um princípio fundamental do direito marítimo, o da solidariedade no mar e o primeiro significa permitir a entrada de navio em perigo que pode causar sérios problemas ambientais.
O tema dos locais de refúgio e das decisões de aceitar ou recusar a entrada de um navio em perigo continua a ser um problema actual e sem resposta, apesar do valor ambiente e protecção do mesmo ser um dos valores maiores que deve reger a actuação dos Estado e da Comunidade Internacional e por isso tudo o que se refere a este tema deveria exigir uma resposta e solução rápida.
Fontes:
-Januário Costa Gomes, Direito Marítimo, Volume IV-Acontecimentos de Mar, Livraria Almedina
-Tiago Vinicius Zanella, Locais de Refúgio: Fornecer ou não refúgio a navios em perigo?
3 comentários em “Do Direito e do Mar”
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Esclarecedor! 🙂 Parabéns Cristina! 🙂 :*
Parabéns.
Parabéns