Hoje vamos falar sobre o navio, como é habitual começaremos pela abordagem internacional, publica e privada neste caso, e por ultimo pela abordagem nacional.

Falando do navio no contexto do direito internacional público não podíamos deixar de falar da Convenção Internacional de Direito do Mar. Verifica-se nesta que não consta uma noção de navio, isso é deixado para o regime nacional de cada Estado, contudo define claramente o comportamento do navio nos diversos espaços marítimos. Assim:

Nas águas interiores e portos os navios nacionais e estrangeiros estão sujeitos à jurisdição do Estado costeiro, à sua competência legislativa e jurisdicional e competência de intervenção coactiva das suas autoridades relativamente a factos ocorridos em espaços sujeitos à sua jurisdição, sem prejuízo da possibilidade de o Estado de pavilhão (ou outros Estados que tenham título relevante perante o Direito Internacional) de acordo com o direito internacional  aplicar as suas normas ou considerar os seus tribunais competentes relativamente a factos que ocorram no navio.  dentro do navio a jurisdição pertence ao Estado de bandeira.

Existe também um uso internacional, e que consta de diversas Convenções Internacionais, segundo o qual as autoridades locais só intervêm a bordo de um navio estrangeiro se o comandante ou o cônsul do Estado de pavilhão o solicitar ou se a ordem pública do porto for perturbada.

No que se refere aos portos em particular existe alguma especificidade? Não há competência exclusiva do Estado de bandeira, há competência do Estado costeiro, podendo o porto inspeccionar os navios estrangeiros a fim de verificar se estão a ser cumpridas as normas internacionais em matéria de segurança marítima, poluição e trabalho marítimo de acordo com as Convenções SOLAS, MARPOL, STCW e MLC. A isto chama-se Port State Control, podendo este impor prazos para o cumprimento das normas aos navios estrangeiros infractores e até em casos limites deter o navio no porto, mas não iremos abordar esta matéria nesta edição do Jornal.

Passando agora ao mar territorial, todos os navios, nacionais e estrangeiros estão também sujeitos, em princípio à jurisdição do Estado Costeiro. Esta jurisdição é, contudo, mais limitada do que a jurisdição sobre os navios em águas interiores, pois os navios têm direito de passagem inofensiva, nos termos do artigo 17º e seguintes da Convenção. Passagem inofensiva relembramos é: “a navegação pelo mar territorial com o fim de: atravessar esse mar sem penetrar nas águas interiores nem fazer escala num ancoradouro ou instalação portuária situada fora das águas interiores; ou de dirigir-se para as águas interiores ou delas sair ou fazer escala num desses ancoradouros ou instalações portuárias”. Devendo a passagem ser contínua e rápida, pode, no entanto, compreender fundear e parar, desde que constituam incidentes comuns de navegação ou sejam impostos por motivos de força maior ou por dificuldade grave ou tenham por fim prestar auxílio a pessoas, navios ou aeronaves em perigo ou em dificuldade grave (artigo 18º).

Existem algumas excepções a este direito dos navios, será o caso de a passagem ser considerada prejudicial à paz, à boa ordem ou à segurança do Estado costeiro (Artigo 19º).

O Estado costeiro relativamente a navios que realizem uma passagem inofensiva no seu mar territorial está limitado nas suas competências legislativas, uma vez que apenas pode intervir nas situações previstas no artigo 21º, nomeadamente em matéria de segurança marítima, pesca e poluição. No que se refere à competência de execução e intervenção coactiva de autoridades do Estado costeiro também é limitada em matéria penal e civil, sendo permitida apenas nos casos previstos nos artigos 27º e 28º nomeadamente em matéria penal se perturbar a paz do país ou a ordem no mar territorial e em matéria civil obrigações assumidas pelo navio ou responsabilidades em que o mesmo tenha incorrido durante a navegação ou devido a esta quando da sua passagem pelas águas do Estado costeiro.

Também nos estreitos (artigo 45º) e nas águas arquipelágicos (artigo 52º) existe direito de passagem inofensiva.

Os navios têm também o direito de passagem em trânsito nos estreitos de acordo com o artigo 39º da Convenção.

Quanto à zona contígua o Estado Costeiro quanto aos navios pode tomar medidas de fiscalização necessárias a evitar infracções às leis e regulamentos aduaneiros, fiscais, de imigração ou sanitários no seu território ou mar territorial e reprimir as infracções às leis ou regulamentos no seu território ou mar territorial. (Artigo 31º). Trata-se de uma competência de intervenção acessória à jurisdição sobre o seu território e mar territorial.

No que se refere à zona económica exclusiva e plataforma continental o Estado costeiro tem uma jurisdição limitada funcionalmente a determinadas matérias como à exploração de recursos naturais, à investigação científica e à protecção e preservação do meio marinho (Artigo 56º e 77º da Convenção). Pelo que apenas nestes casos pode intervir quanto a navios estrangeiros.

O Estado costeiro tem competência legislativa e jurisdicional e de intervenção coactiva das autoridades. Fora dos domínios de jurisdição o regime aplicável aos navios é semelhante ao estabelecido para o Alto Mar (artigos 58º e 78º da Convenção), em que todos os navios de outros Estados gozam de liberdade de navegação. (artigo 58º)

Passando agora para o Alto Mar, estabelece o artigo 90º que todos os Estados, costeiros ou sem litoral, têm o direito de fazer navegar no alto mar navios que arvoram a sua bandeira. O direito de navegação consta igualmente do artigo 87º como uma das liberdades do Alto Mar.

No que se refere à nacionalidade dos navios o artigo 91º define que: “Todo o Estado deve estabelecer os requisitos necessários para a atribuição da sua nacionalidade a navios, para o registo de navios no seu território e para o direito de arvorar a sua bandeira.” Os navios possuem a nacionalidade do Estado cuja bandeira estejam autorizados a arvorar, devendo o Estado fornecer aos navios os documentos pertinentes.

É importante referir que consta expressamente neste artigo que deve existir um vínculo substancial (“a genuine link” na versão inglesa) entre o Estado e o navio, o que bem sabemos que nem sempre acontece, estamos a falar obviamente das chamadas bandeiras de conveniência.

Quanto ao estatuto dos navios o artigo 91º refere que os navios devem navegar sob bandeira de um só Estado e salvo nos casos excepcionais previstos na Convenção e em Tratados Internacionais, devem submeter-se no Alto Mar à jurisdição exclusiva desse Estado. Como excepção a título de exemplo temos obviamente as situações de combate à pirataria marítima ou trafico de escravos, havendo neste caso direito de visita por parte de navio de guerra ou navio ao serviço do Estado (artigo 110º). Mas já iremos falar melhor sobre as excepções a esta regra.

Durante uma viagem ou em porto de escala, um navio não pode mudar de bandeira, a não ser no caso de transferência efectiva de propriedade ou de mudança de registo. (Artigo 92º nº 1)

Se um navio navegar sob bandeira de dois ou mais Estados, utilizando cada uma delas de acordo com a sua conveniência, não pode reivindicar nenhuma dessas nacionalidades perante um terceiro Estado e pode ser considerado como um navio sem nacionalidade. (nº 2 do artigo 92º).

Conforme já dito a regra em Alto Mar é de que o Estado de bandeira de um navio tem competência exclusiva sobre os navios que arvoram a sua bandeira, tendo autoridades do Estado de bandeira uma competência coactiva, onde se inclui o direito de visita, de fazer uma inspecção, de desviar o navio, de detenção e inclusive de destruição de navio que cause prejuízo grave. A tónica é colocada na nacionalidade do navio. (artigo 91º nº 1).

Contudo, a jurisdição exclusiva do Estado pavilhão tem algumas excepções:

  1. As resultantes de resoluções das Nações Unidas;
  2. O direito de perseguição de navios estrangeiros iniciada em zonas sob jurisdição do Estado costeiro (artigo 111º da Convenção);
  3. As medidas para evitar a poluição resultante de acidentes marítimos (Convenção sobre Intervenção em Alto Mar em Caso de Acidente ou Podendo Vir a Causar Poluição por Hidrocarbonetos-INTERVENTION (Bruxelas 1969), Protocolo de 1973 Relativo à Intervenção em Alto Mar em Casos de Poluição por Substancias Diferentes dos Hidrocarbonetos e artigo 221º da Convenção de Direito do Mar);
  4. As medidas contra pessoas e navios que efectuem transmissões não autorizadas de rádio ou televisão (artigo 109º da Convenção);
  5. As medidas contra pessoas e navios envolvidos em pirataria (artigo 105º da Convenção);
  6. O direito de um navio de guerra visitar um navio estrangeiro caso haja motivo razoável para suspeitar que se dedica à pirataria, ao tráfico de escravos, que é utilizado para fazer transmissões não autorizadas, que não tem nacionalidade ou que tem a nacionalidade do navio de guerra embora arvore um pavilhão estrangeiro ou recuse-se a içar o seu pavilhão (Artigo 110º da Convenção)

O Estado pavilhão deve exercer, de modo efectivo a sua jurisdição em matéria administrativa, técnica e até social sobre os navios que arvoram a sua bandeira, nele incluindo-se a manutenção de um registo de navios, a de tomar as medidas necessárias para garantir a segurança no mar e de abrir um inquérito nos casos de acidente marítimo ou incidente de navegação no alto mar que cause danos graves. (Artigo 94º)

A Convenção estabelece também limites à jurisdição penal e disciplinar em caso de abalroamento ou outro incidente de navegação no alto mar (artigo 97º), determinando que o Estado: assegure que o comandante do navio que arvore o seu pavilhão preste assistência (artigo 98º); tome medidas eficazes no sentido de impedir e punir o transporte de escravos em navios autorizados a arvorar a sua bandeira (artigo  99º); e coopere com outros Estados na repressão do trafego ilícito de drogas (artigo 108º) e das transmissões não autorizadas efectuadas a partir do alto mar (artigo 109º)

Entrando agora na matéria de direito internacional privado sobre os navios, quanto a direitos reais, nos termos do artigo 46º do Código Civil que define o princípio da “lex rei sitae”, o regime da posse, propriedade e demais direitos reais é definido pela lei do Estado em cujo território as coisas se encontrem situadas. Este regime traz algumas dificuldades uma vez que a característica do navio é a mobilidade, não fazendo sentido aplicar-se esta regra aos navios.

O nº 3 dá-nos a resposta, diz que a constituição e transferência de direitos sobre os meios de transporte submetidos a um regime de matrícula-é o caso dos navios-são regulados pela lei do país onde a matrícula tiver sido efectuada. Esta disposição aplica-se ao transporte internacional e apenas quanto aos navios estrangeiros.

Os navios portugueses são regulados pelo regime nacional sobre a matéria que é o Decreto-lei nº 201/98 de 10 de Julho (rectificado pela Declaração de Rectificação nº 11-P/98 de 31 de Julho) veio definir a questão da nacionalidade do navio e definir o estatuto legal do navio. Nos termos do artigo 1º é definido navio como: “o engenho flutuante destinado à navegação por água.” Fazendo parte integrante de um navio: a máquina principal, as máquinas auxiliares, todos os aparelhos, aprestos, meios de salvação, acessórios e mais equipamentos existentes a bordo que sejam necessários à sua operacionalidade. (nº 2 do artigo 1º).

Os navios estão sujeitos a registo, bem como os factos a eles respeitantes, assim estabelece o artigo 2º deste diploma.

Quanto à nacionalidade dos navios o artigo 3º diz que consideram-se nacionais os navios cuja propriedade se encontra registada em Portugal e que a atribuição de nacionalidade portuguesa confere ao navio o direito ao uso da respectiva bandeira, com os direitos e obrigações que lhe são inerentes.

Todos os navios têm um nome, estando este sujeito a aprovação prévia do serviço publico competente (actualmente cabe à DGRM) e deve ser distinto dos outros nomes que já se encontram registados, a menos que pertença ao mesmo proprietário, distinguindo-se por numero cardinal adicional. (Artigo 4º)

Se o navio tiver uma tonelagem inferior a 100 t de deslocamento, assim como os navios destinados exclusivamente a águas interiores, podem ser identificados apenas por um numero atribuído pelo serviço competente (actual DGRM).

No casco do navio deve constar o nome deste, o seu número de identificação e o nome do local onde este se encontra registado, de acordo com a legislação aplicável. (artigo 6º)

Os navios de passageiros iguais ou superiores a 100 TAB e de mercadorias iguais ou superiores a 300 TAB têm de adquirir junto da IMO um número de identificação, nos termos da Convenção SOLAS (Capitulo XI-1). Não se aplica a navios de guerra, navios de Estado, pesqueiros, embarcações de recreio e navios inferiores a 24 metros.

Os navios são também identificados pela sua arqueação (tonnage), que é uma medida do volume dos espaços fechados do navio medido sobre as linhas de traçado, muito utlizada do ponto de vista fiscal e comercial. Existem dois tipos de arqueação, a arqueação bruta que reflecte a dimensão do navio e a arqueação líquida que reflecte a capacidade do navio gerar receita. A arqueação dos navios é regulada pela Convenção Internacional sobre a Arqueação dos Navios de 1969 adoptada pela IMO em 1982 (TONNAGE CONVENTION)

Quanto ao conceito de navegabilidade do navio o artigo 8º define que: “A navegabilidade do navio depende da verificação das condições técnicas a que o navio tem de obedecer de acordo com a legislação em vigor, e do preenchimento dos requisitos necessários à viagem que vai empreender e à carga que vai transportar” 

Uma regra muito importante é a de que os navios têm personalidade e capacidade judiciária, nos casos e para os efeitos previstos na lei, ou seja, podem ser parte em juízo como autor ou como réu, é a capacidade de ser parte. (Artigo 7º) E quais são os casos previstos na lei? São dois sobretudo: o do artigo 28° n° 2 do Decreto-Lei n° 352/86, de 21 de Outubro (transporte de mercadorias) e do artigo 11° n° 2 do Decreto-Lei n° 202/98, de 10 de Julho (responsabilidade do proprietário do navio). Passamos a explicar:

No que se refere ao primeiro caso o Decreto-Lei n° 352/86, de 21 de Outubro, que trata sobre transporte de mercadorias por mar, determina no artigo 10° n° 1 a nulidade dos conhecimentos de carga emitidos por quem não tenha a qualidade de transportador marítimo. Por sua vez o artigo 28° n° 1 coloca a hipótese de o transportador marítimo não ser identificável com base nas menções constantes do conhecimento de carga e se assim for “o navio que efectua o transporte responde perante os interessados na carga nos mesmos termos em que responderia o transportador”. O nº 2 do artigo 28° prossegue dizendo que: “Para o efeito do disposto no número anterior, é atribuído ao navio personalidade judiciária, cabendo a sua representação ao proprietário, ao capitão ou seu substituto, ou ao agente de navegação que requereu o despacho do navio.”

Quanto ao segundo caso o Decreto-Lei n° 202/98, de 10 de Julho, trata da responsabilidade do proprietário do navio. O artigo 4° diz que proprietário do navio quando seja também o armador responde pelos danos derivados de actos e de omissões praticados pelo capitão ou pela tripulação, pelos pilotos ou por qualquer pessoa ao serviço do navio, nos termos da responsabilidade do comitente. Por sua vez o artigo 6° em que proprietário e armador não são a mesma pessoa define que o proprietário não armador apenas responde subsidiariamente, a responsabilidade principal pertence ao armador não proprietário. Estabelece o artigo 11° n° 1 que se o proprietário ou o armador não forem identificáveis com base no despacho de entrada na capitania “o navio responde, perante os credores interessados, nos mesmos termos em que aqueles responderiam”. Consequentemente o n° 2 do mesmo artigo dispõe que: “Para efeitos do disposto no número anterior, é atribuída ao navio personalidade judiciária, cabendo a sua representação em juízo ao agente de navegação que requereu o despacho.”

Como o navio só responde quando o proprietário ou o armador não forem identificáveis, temos de distinguir portanto, três situações:

  1. As situações em que não é identificado o proprietário do navio, nem o armador- aqui responde o navio directamente perante os credores interessados;
  2. As situações em que não é identificado o armador mas é conhecido o simples proprietário do navio-nestes casos responde o simples proprietário do navio, com todos os bens que integram o seu património, incluindo o navio. Não funciona a responsabilidade directa do navio.
  3. As situações em que não é identificado o simples proprietário, mas é conhecido o armador-nestes casos o navio responde nos mesmos termos que o simples proprietário responderia. Responde o navio directamente mas apenas subsidiariamente em relação à responsabilidade do armador.

No que se refere em particular à capacidade judiciária o navio tem de ser representado (artigo 9° do Código de Processo Civil), portanto não tem capacidade judiciária no verdadeiro sentido do termo.

Um comentário quanto à representação do navio, já vimos que de acordo com o artigo 28º nº 2 do Decreto-Lei nº 352/86, de 21 de Outubro, a representação em juízo cabe ao proprietário, ao capitão ou ao seu substituto, ou ao agente de navegação que requereu o despacho do navio. Ora no caso em que o proprietário é conhecido sendo o navio representado por este porque deverá ser responsabilizado o navio e não apenas o proprietário do navio? Não se vê razão porque não possa apenas responder o proprietário. Pode-se sempre dizer que uma vez que o navio responde nos mesmos termos que o transportador, pode o navio, exercer direito de regresso sobre as pessoas constantes do artigo 10º nº 2, mas sendo ele representado pelo proprietário do navio que interesse tem este em ir contra si próprio?

Perante danos imputáveis ao proprietário ou ao armador e não sendo estes conhecidos o navio responde em dois planos:

– No plano da responsabilidade civil: o navio, através do seu representante, podendo pôr em causa os factos, a ilicitude, a culpa e os danos, todos o elemento que lhe possam conferir responsabilidade e consequente obrigação de indemnizar;

– No plano da responsabilidade patrimonial: o navio/pessoa é o navio/objecto e vai responder com a sua substância, pela dívida. Pode por isso em sua defesa invocar todos os mecanismos que possam impedir o seguimento da execução patrimonial.

O navio não tem de facto e de direito representação autónoma, até ao momento em que lhe sejam imputadas as responsabilidades dos artigos 28° n° 1 e 11° n° 1 dos Decretos-Lei n°s 352/86 e 202/98, respectivamente.

A representação autónoma apenas existe ab initio se desaparecerem o proprietário e o armador, fazendo o navio responder por si. Há uma imputação indirecta de regras pois dirige-se directamente a outros sujeitos, ao proprietário e ao armador e apenas indirectamente ao navio.

A personalidade do navio surge portanto apenas no momento em que a questão de responsabilidade é judicializado.

E porquê a personalidade e capacidade judiciária do navio? O navio é uma coisa, mas assume uma individualização especial, tem um nome, assume uma identidade, desloca-se, é servido por uma tripulação, é dirigido pelo capitão, presta serviços. Constitui, nessa base, um centro de valorações autónomas específicas. Tem por isso uma dimensão especial, na medida em que lhe confere consequências jurídicas.

De acordo com o entendimento do Prof. Januário Costa Gomes o navio responde civilmente por ser “o personagem principal da exploração marítima”, porque o próprio navio é “na sua actividade, um criador de riscos de mar”. (in II Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo: O Navio, Editora Almedina, pag. 266).

E o navio tem personalidade jurídica além da personalidade judiciária? A personalidade jurídica consiste na possibilidade de ser titular de relações jurídicas. É uma qualidade que é reconhecida às pessoas singulares e atribuída às pessoas colectivas, o navio não é uma pessoa, é uma coisa. Entendemos por isso que não.

Já vimos que ao permitir que o navio responda nos mesmos termos que o proprietário, o armador ou o transportador está a personalizar ou a personificar o navio. Mas será isto suficiente para lhe dar personalidade jurídica? Na realidade apesar de todas as especificidades do seu regime jurídico o navio não deixa de ser uma coisa, ele não é uma pessoa jurídica.

De acordo com o Prof. Menezes Cordeiro o navio é uma pessoa rudimentar na acepção criada por Paulo Cunha na medida em que dispõe de “uma personalidade colectiva rudimentar: operacional, apenas, para os concretos âmbitos que a lei lhe atribuir” e que tem de se ver visto casuisticamente. O navio tem “alguma personalidade substantiva” como a possibilidade de actuação processual do próprio navio. “A actuação processual é, porventura, uma das mais marcantes formas de exercer um direito: este ganha-se ou perde-se, amplia-se ou reduz-se, consoante o modo de o colocar no foro e em função do epílogo da acção. A personalidade judiciária-mesmo quando, em rigor, se pudesse chamar “capacidade de gozo judiciário”-traduz uma inegável margem de personalização substantiva” (Januário Costa Gomes, II Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo: O Navio, Editora Almedina pag. 272).

Voltando de novo à analise do Decreto-Lei sobre o estatuto legal do navio, de acordo com o artigo 9º um navio pode ser arrestado ou penhorado, mesmo que já se encontre despachado para viagem. O mesmo quanto às mercadorias carregadas no navio arrestado ou penhorado, ainda que esteja já despachado para viagem. Esta matéria de arresto de navio iremos abordar na próxima edição do Jornal, bem como as suas consequências contratuais.

Podem também constituir-se obviamente hipotecas sobre um navio.

Os contratos relativos à constituição, modificação, transmissão ou extinção de direitos reais sobre o navio têm de ser celebrados por escrito, com reconhecimento presencial da assinatura dos outorgantes. (artigo 10º).

As questões relacionadas com direitos reais sobre o navio são reguladas pela lei da nacionalidade que este tiver ao tempo da constituição, modificação, transmissão ou extinção do direito em causa. (artigo 11º).

Na próxima edição vamos falar sobre arresto de navios e obviamente dos créditos marítimos.

 

Fontes:

– Convenção Internacional sobre Direito do Mar

– Januário Costa Gomes, II Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo: O Navio, Editora Almedina.

 



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