Não existe uma Convenção que regule este assunto, o contrato é regulado pela lei interna escolhida pelas partes no contrato ou pela lei do lugar onde este foi celebrado (normas de conflito- direito internacional privado-artigo 35º do Código Civil), pelo que iremos apenas falar do nosso regime nacional.

O contrato de construção e reparação naval encontra-se regulado pelo Decreto-lei nº 201/98, de 10 de Julho (Estatuto Legal do Navio), nos artigos 12º e seguintes. Este diploma não foi até hoje alterado, houve apenas uma rectificação, a Declaração de Rectificação nº 11-P/98 de 31 de Julho, e revogou os artigos 485º a 487º, e 489º a 491º do Código Comercial.

Noção de Navio:

Já falámos sobre a noção de navio numa outra edição do Jornal, contudo é importante relembrar o seu conceito, o artigo 1º deste decreto-lei define Navio como: “o engenho flutuante destinado à navegação por água, fazendo parte integrante do navio, a máquina principal e as máquinas auxiliares, todos os aparelhos, aprestos meios de salvação, acessórios e mais equipamentos existentes a bordo necessários à sua operacionalidade.”

Forma do contrato:

Estabelece o artigo 12º que o contrato de construção de navio e as suas alterações estão sujeitos a forma escrita, portanto o contrato tem de ser sempre reduzido a escrito.

Regime do contrato:

O contrato é disciplinado pelas cláusulas do instrumento contratual, pelo decreto-lei nº 201/98 de 10 de Julho e subsidiariamente, pelas normas aplicáveis ao contrato de empreitada, desde que não contrariem o diploma em análise (artigo 13º).

Projecto de construção do Navio:

A construção de um navio inicia-se com um projecto que é elaborado por arquitectos e engenheiros navais e posteriormente é aprovado pelo dono da obra.

De acordo com o nº 1 do artigo 14º o construtor deve executar a construção do navio em conformidade com o projecto aprovado pelo dono da obra e sem vícios que excluam ou reduzam o seu valor ou a sua aptidão para o uso previsto no contrato, ou, na falta desta indicação, para o uso comum do tipo de navio em causa.

O construtor não é responsável pelo projecto elaborado pelo dono da obra ou por terceiro, consta no nº 2 do artigo. Contudo, deve avisar o dono da obra dos defeitos do projecto que sejam detectáveis por um técnico diligente e sugerir-lhe as necessárias alterações (nº 3)

Fiscalização:

O artigo 15º diz-nos que o dono da obra pode fiscalizar, à sua custa, a execução dela desde que não perturbe o andamento normal da construção e que por sua vez o construtor deve, durante a construção, conceder ao dono da obra e aos seus representantes as facilidades necessárias à fiscalização e dar-lhes a assistência de que razoavelmente careçam para o seu cabal desempenho. O mesmo se diga quanto aos subempreiteiros que realizem trabalhos destinados à construção do navio.

Propriedade do Navio em construção:

Quanto à questão sobre quem é o proprietário do navio em construção, o  artigo 16º define que, salvo acordo em contrário, o navio, durante a construção, é propriedade do construtor, excepto os materiais fornecidos pelo dono da obra, transferindo-se a propriedade com a entrega do navio pelo construtor ao dono de obra com a aceitação deste.

Alterações:

Caso hajam alterações durante a construção do navio, por exemplo novas regras técnicas, regulamentos, convenções internacionais ou quaisquer outras normas legais que imponham alterações na construção, deve o construtor, no prazo de 30 dias a contar do início da respectiva vigência, avisar o dono da obra e apresentar-lhe uma proposta do preço das alterações e, sendo caso disso, da nova data da entrega do navio (artigo 17º nº 1).

Caso as partes não cheguem a acordo quanto à proposta do preço das alterações, o construtor deve proceder às alterações impostas- já sabemos que, salvo convenção em contrário, ele é o proprietário do navio até ser entregue e aceite pelo dono da obra- competindo ao tribunal fixar as modificações quanto ao preço e prazo de execução (artigo 17º nº 2).

Ainda quanto ao preço das alterações e salvo acordo das partes em contrário, o custo das alterações ao projecto de construção, legais ou convencionais, deve ser pago nas condições do preço inicial (artigo 18º).

Se o construtor decidir fazer alterações que não decorram de obrigações legais mas por sua iniciativa, sem autorização por parte do dono da obra, a obra será tida como defeituosa. Contudo, se entretanto, o dono de obra decidir aceitar esta tal como foi executada, não fica obrigado a pagar suplemento de preço, nem indemnização por enriquecimento sem causa (artigo 1214º do Código Civil referente ao contrato de empreitada que se aplica subsidiariamente ao contrato de construção de navio)

Por outro lado, o dono de obra pode exigir que sejam feitas alterações ao plano convencionado, desde que o seu valor não exceda a quinta parte do preço estipulado e não haja modificação da natureza da obra (artigo 1216º nº 1 do Código Civil). O construtor do navio terá neste caso direito a um aumento do preço estipulado, correspondente ao acréscimo de despesa e de trabalho, e a um prolongamento do prazo para a execução da obra (nº 2 do mesmo artigo).

Se pelo contrário, das alterações introduzidas resultar uma diminuição de custo ou de trabalho, o construtor tem direito ao preço estipulado, com dedução do que, em consequência das alterações, poupar em despesas ou adquirir por outras aplicações da sua actividade (nº 3 do mesmo artigo)

Se forem feitas alterações depois da entrega do navio ou obras que tenham autonomia em relação às previstas no contrato o dono da obra tem nestes casos o direito de recusar estas se as não tiver autorizado, podendo, também, exigir a sua eliminação, se for possível, e, em qualquer caso, uma indemnização pelos prejuízos, nos termos gerais (artigo 1217º do Código Civil)

Experiências:

Durante a construção, o navio e os seus equipamentos, devem ser submetidos às experiências previstas no contrato, na legislação aplicável e às impostas pelos órgãos da administração encarregados da fiscalização das condições técnicas dos navios (artigo 19º nº 1).

O construtor deve, com a antecedência mínima de 30 dias, informar o dono da obra do programa das experiências, sendo que estas correm por conta do construtor, excepto as relativas à tripulação (artigo 19º nº 2 e 3), que serão pagas pelo dono da obra.

Caso sejam detectados defeitos durante as experiências, o construtor deve corrigi-los e proceder às desmontagens e verificações que forem consideradas necessárias (artigo 20º).

Entrega e Aceitação do Navio:

No que se refere à entrega e aceitação do navio-conforme vimos, esse é o momento de passagem da propriedade do navio do construtor para o dono da obra- esta, a entrega, deve ser feita no estaleiro do construtor após a realização de todas as experiências, inspecções e obtenção das aprovações dos competentes órgãos administrativos (artigo 21º nº 1).

No momento da entrega, de acordo com o contrato de construção, o navio deve estar munido dos aparelhos, aprestos, meios de salvação, acessórios e sobressalentes (artigo 21º nº 2).

Caso o dono da obra não aceite o navio no prazo devido incorre em mora creditória, nos termos da lei civil (artigo 21º nº 3). E qual é o prazo devido? Este diploma não definiu o “prazo devido”, nem consta no contrato de empreitada que se aplica subsidiariamente, pelo que terá de ser o prazo acordado pelas partes no contrato.

Retirada do Navio do estaleiro:

Quanto ao prazo de retirada do navio do estaleiro pelo dono de obra é de 10 dias a contar da aceitação, se outro prazo não for acordado, ultrapassado esse prazo incorre em mora creditória, nos termos da lei civil. (artigo 22º)

O construtor do navio na data da entrega do navio ao dono da obra deve proporcionar-lhe: (artigo 23º)

  1. Certificados do navio e dos equipamentos;
  2. Livros de instruções e de informações técnicas;
  3. Desenhos;
  4. Instruções e informações relativas à condução;
  5. Inventários e listas de acessórios e sobressalentes;
  6. Outros documentos previstos no contrato de construção.

Garantia:

Após a aceitação do navio pelo dono de obra, o construtor garante o navio, durante um ano, a contar da aceitação, quanto aos defeitos da construção (artigo 24º nº 1).

Caso surja uma avaria em resultado de defeito de construção, o construtor é obrigado a corrigir esse defeito ou a substituir o equipamento defeituoso (artigo 24º nº 2).

Se o navio ficar impossibilitado de alcançar o estaleiro do construtor ou quando se verifique manifesto inconveniente nessa deslocação, o construtor deve efectuar a reparação ou a substituição do equipamento em local adequado (artigo 24º nº 3).

Direito de retenção:

O construtor tem direito de retenção sobre o navio, para garantia dos créditos emergentes da sua construção (artigo 25º).

Refira-se desde já que em regra o preço da obra de construção do navio, é pago na íntegra com a aceitação do navio pelo dono da obra, tal como acontece com o contrato de empreitada, excepto se as partes tiverem acordado o contrário.

Defeitos:

O dono da obra deve verificar, antes de aceitar o navio, se este se encontra nas condições convencionadas e sem vícios, devendo a verificação ser feita dentro do prazo usual ou, na falta de uso, dentro do período que se julgue razoável depois de o construtor colocar o dono de obra em condições de poder fazer essa verificação no navio (artigo 1218º nº 1 e 2 do Código Civil). Qualquer das partes tem o direito de exigir que a verificação seja feita à sua custa, por peritos (nº 3).

O resultado da verificação deve ser comunicado ao construtor, sendo que a falta de verificação ou da comunicação importa aceitação da obra (nº 4 e 5.)

O construtor não responde pelos defeitos de obra, se o dono a aceitou sem reserva, com conhecimento daqueles (artigo 1219º do Código Civil)

Caso o dono de obra depare-se com defeitos de construção no navio deverá comunicá-los ao construtor, no prazo de 30 dias a contar do seu conhecimento, sob pena de caducidade dos direitos (artigo 26 nº 1).

Caso o construtor reconheça a existência do defeito, este reconhecimento equivale à comunicação (artigo 26º nº 2).

No que se refere à eliminação dos defeitos de obras, os resultados das provas, a aprovação pelo dono da obra e a aceitação sem reservas, não exoneram o construtor da responsabilidade de corrigir os defeitos, salvo se o dono da obra os conhecia e mesmo assim aceitou o navio (artigo 27º).

Se os defeitos puderem ser suprimidos, o dono da obra tem o direito de exigir do empreiteiro a sua eliminação, contudo, se não puderem ser suprimidos, o dono da obra pode exigir nova construção (artigo 1221º nº 1 do Código Civil). Cessam, contudo, esses direitos, se as despesas forem desproporcionais ao proveito (nº 2)

Se os defeitos não forem eliminados, o dono da obra pode exigir a redução do preço, segundo juízos de equidade, ou a resolução do contrato, se os defeitos tornarem o navio inadequado ao fim a que se destinava (artigo 28º). O mesmo se diga se não for feita nova construção do navio (artigo 1222º nº 1).

Direito a Indemnização:

Estes direitos não excluem o direito à indemnização nos termos gerais (artigo 29º).

Caducidade dos direitos:

Os direitos caducam no prazo de dois anos a contar da entrega do navio, senão forem exercidos durante esse tempo. (artigo 30º nº 1) Contudo, se o vício for oculto, o prazo de dois anos conta-se a partir da data do seu conhecimento pelo dono de obra (artigo 30º nº 2).

O direito de regresso do construtor contra os subempreiteiros caduca se não lhes for comunicada a denúncia dentro do prazo de trinta dias seguintes à recepção desta (artigo 1226º do Código Civil).

Pluralidade de Construtores:

E se o navio for construído por vários construtores, ou seja, no caso em que a obra é adjudicada, através de instrumentos autónomos, a diferentes empreiteiros, assumindo cada um deles o encargo de parte da construção? Aplicam-se na mesma as disposições deste diploma, com as necessárias adaptações (artigo 31º)

Impossibilidade de execução de obra:

Se a execução da obra de construção de navio se tornar impossível por causa não imputável a qualquer uma das partes, é aplicável o disposto no artigo 790º do Código Civil, ou seja, a obrigação extingue-se. Se o negócio tiver sido feito sob condição ou a termo e a prestação for possível na data de conclusão do negócio, mas tornar-se impossível antes da verificação da condição ou do vencimento do termo, a impossibilidade é considerada superveniente e não afecta a validade do negócio.

Se tiver havido começo da construção do navio, o dono da obra é obrigado a indemnizar o construtor do trabalho executado e das despesas realizadas (artigo 1227º do Código Civil).

Risco de perda ou deterioração da obra:

Se por causa não imputável a qualquer das partes, a coisa, o navio, perecer ou se deteriorar, o risco corre por conta do proprietário, diga-se do construtor, em regra (artigo 1228º nº 1).

Se, porém, o dono da obra estiver em mora quanto à verificação ou aceitação do navio, o risco correrá por conta dele (artigo 1228º nº 2.)

Extinção do contrato:

O dono da obra pode desistir da construção do navio a todo o tempo, ainda que tenha sido iniciada a construção, desde que indemnize o construtor dos seus gastos e trabalho, bem como do proveito que poderia tirar da obra (artigo 1229º).

O contrato de construção de navio não se extingue por morte do dono da obra, nem por morte ou incapacidade do construtor, a menos que tenham sido tomadas em conta as qualidades pessoais deste no acto de celebração do contrato (artigo 1230º nº 1).

Extinto o contrato por morte ou incapacidade do construtor, considera-se a execução da obra como impossível por causa não imputável a qualquer das partes (artigo 1230º nº 2).

Contrato de reparação de Navio:

Aplica-se este regime, com as necessárias adaptações (artigo 32º)

É assim desta forma que se encontra regulado o contrato de construção e reparação naval.

Na próxima edição do Jornal passamos para outra temática, para as marítimo-turísticas.

 

Fontes:

– Decreto-lei nº 201/98, de 10 de Julho;

– Declaração de Rectificação nº 11-P/98 de 31 de Julho;

– Código Civil (artigos 1207º e seguintes).



Um comentário em “Contrato de Construção e Reparação de Navio”

  1. Raúl Caria diz:

    Bom dia. Excelente artigo. Somente um pequeno reparo, embora concorde com o afirmado no artigo.

    Quando é dito , e passo a citar “A construção de um navio inicia-se com um projecto que é elaborado por arquitectos e engenheiros navais e posteriormente é aprovado pelo dono da obra.”, não há obrigatoriedade (legal) que o mesmo seja elaborado por um arquitecto e/ou engenheiro naval, visto esta actividade (ainda) não estar regulamentada.

    Encontra-se um curso uma tentativa para isso, através do Colégio de Engenharia Naval da Ordem dos Engenheiros.

    Fico aguardando pelo artigo sobre a MT (Marítimo-Turística).

    Bem haja.

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