Peguei um Ita no norte, e vim pró Rio morar

Dorival Caymmi

Sensivelmente a meio dos anos cinquenta, Charles Engine Charlie Wilson, CEO da General Motors, e depois secretário da defesa da Administração Eisenhower, e por isso mesmo com algum destaque no conflito da Coreia, afirmou, mais ao menos com estas palavras, que o que é bom para a General Motors é bom para os Estados Unidos.
Mais tarde, agora a meio dos anos sessenta, Juracy Magalhães, político brasileiro, embaixador em Washington e ministro da justiça, afirmou que o que era bom para os Estados Unidos era bom para o Brasil.
Foi o que bastou para quase logo a seguir, Chico Buarque, num exercício irrepreensível de lógica, afirmar que então o que era bom para a General Motors era bom para o Brasil.
Mas não é. Apesar da imensa graça da frase, não é verdadeira, aliás como pretendia o seu genial autor.
Sabemos à exaustão que os problemas concretos pedem soluções concretas, desenhadas por medida, para satisfazer oportunidades.
O Brasil entre os anos 50, 60 e 70, adoptou um conjunto de opções em termos de transportes, em parte copiados dos Estados Unidos, em parte por razões económicas e politicas, que acabaram por revelar-se não serem as mais apropriadas.
Os EUA são um país em landscape, sem problemas petrolíferos de maior, em que pessoas e bens, circulam maioritariamente no sentido este/oeste, resultado de seu interior desenvolvido, onde a ferrovia e a rodovia continuam a cumprir o desígnio da nação, que é a circulação através da ligação costa a costa.
O Brasil é um país em portrait, com problemas energéticos, sobretudo petrolíferos, onde pessoas e bens circulam principalmente no sentido norte/sul, fruto do ainda escasso desenvolvimento do interior, e onde deveria permanecer a navegação junto à costa, assegurando a matriz litoral atlântica, em que o país se fundou e desenvolveu.
Actualmente o transporte no Brasil continua a fazer-se preferencialmente na vertical, o que não é particularmente bom porque revela a precaridade do desenvolvimento do interior do país, e por rodovia, o que é francamente mau, por todas as razões que conhecemos, e onde avulta a questão ambiental, agravado pela ainda insuficiente autonomia em petróleo.
E no entanto as coisas nem sempre foram assim, e na primeira metade do século XX, com destaque para os anos 20, 30 e 40, o Brasil viajou de Ita.
Os Itas, e esta expressão marca mais do que uma época, uma cultura, como o barroco mineiro, os bondes, as iaiás e os ioiôs, a bossa nova, ou o escrete, constituíam uma imensa frota de navios de cabotagem, que foram buscar o nome ao facto de todos as embarcações terem o seu nome começado por ita, o que na língua tupi-guarani significa, pedra.
Contudo, havia quem afirmasse à época, que a pedra tinha a ver com o nome dos proprietários da companhia que operava os navios, a Companhia Nacional de Navegação Costeira, ou apenas Costeira no imaginário popular, a família Lage, de ascendência direta portuguesa. O lage, teria dado laje, esta pedra, e pedra ita. Os itas.
Itahité, Itaimbé, Itapagé, Itaberá, Itagiba, Itapurá, Itapé, Itaquara, Itatinga, Itaquatiá, Itaipu, Itaguassu, Itajubá, Itapema, Itapuca, Itaúba, Itaquicé, Itanagé, Itaquiatiá, Itaimbé, Itapemerim, Itapuã, Itapuí, Itamar, Itamaraty, Itaquicé, Itassucê etc., ita, etc, ita, etc.
De Belém do Pará a Porto Alegre, do Rio de Janeiro a Ilhéus, ou de Santos a S. Sebastião, os Itas enxamearam a costa brasileira.
As suas características, no que respeita a geometria, capacidade e propulsão foram mudando ao longo dos anos, acompanhando a evolução daqueles assuntos noutras partes do globo, mas não com especial pressa, para honra daquele litoral pachola, e glória de uns barcos chamados Itas.
Fortemente estratificada, como é timbre brasileiro, o Ita transportava uma população que ia desde o comerciante que ia trocar porcos e cajus por cabras e mangas, no camarote apertado, até ao pianista clássico que viajava em tourneé, e o juiz itinerante no camarote de luxo, até ao povão que ia à procura de qualquer coisa em qualquer outro lugar, espalhado pelo convés da cobertura.
Existem relatos maravilhosos destas viagens, e felizmente alguns de pessoas ainda vivas.
Famílias inteiras, com ou sem bábá, que mudavam de Estados, em busca de uma vida melhor, estudantes para as aulas ou para as férias, destacamentos policiais e presos, políticos em busca do seu eleitorado, equipas de futebol, sambistas, e comerciantes, muitos comerciantes, de tudo e mais alguma coisa, os célebres turcos, hoje sírios, arménios, libaneses, árabes, mas que à data em que entraram no Brasil, eles ou os seus ascendentes, eram turcos, turcos otomanos.
Os Itas eram essencialmente navios de cabotagem, a operar nas águas brasileiras, mas alguns arriscavam-se por outros mares, indo ao Caribe, ao Golfo do México, e até à Europa.
Em 1934 o Itapagé, transportou a delegação brasileira aos Jogos Olímpicos de Los Angels.
Existiam essencialmente três tipos de Itas: pequenos, com cerca de 60 metros, para 100 passageiros, médios, com cerca de 80/90 metros, para 150 passageiros, e os grandes, com 110/120 metros, e até quase 300 passageiros.
Uma viagem longa podia durar um mês, e uma curta, entre duas escalas próximas, um único dia.
De Belém do Pará ao Rio de Janeiro, como no samba célebre de Dorival Caymmi, eram dez dias.
Nessa altura era mais acessível ir de Santos ao Rio de Ita, do que subir a S.Paulo e apanhar o comboio para a capital.
Alguns, chegados ao Norte, a Belém, ainda subiam o Amazonas até Manaus.
Os Itas traziam as mangas, os cajus e as laranjas do norte, e levavam as melancias, as uvas e as maçãs do sul.
Traziam o mate e o charque do sul, e levavam o fumo e os couros do norte. Levavam cachaça para lá e traziam café para cá.
Levavam o trigo fino do sul e traziam a farinha finíssima do norte.
Mas transportavam sobretudo gente. Gente à procura de um futuro que substituísse um passado.
Gente brasileira, ou gente de outras terras, para lá do grande oceano, e à procura ainda da terra ideal.
E gente nascida a bordo. Itamar Franco, recentemente falecido e também recentemente Presidente da República do Brasil, deve o seu nome a ter nascido num Ita, e à sorte de não se ter chamado Itamarindo.
O declínio da presença dos Itas na costa brasileira foi gradual e contínuo, e muito provavelmente fruto das referidas opções menos acertadas em matéria de transportes.
Os Itas eram o meio de transporte ideal para um país com um muito extenso litoral, de quase 7500 quilómetros, possuidor de águas amenas e portos abrigados, e com a maioria da sua população concentrada na costa.
Mas na transição para os anos trinta, outro Presidente da República, Washington Luiz, já afirmava: governar é construir estradas.
Ao longo dos anos sessenta e setenta, os Itas passaram a estar mais tempo ancorados do que a navegar, depois começaram a ser concentrados numa das várias e belíssimas reentrâncias da baía da Guanabara, e aqui sucessivamente desmantelados e sucateados.
Perduram ainda no imaginário e nas esparsas narrativas dos felizardos que neles viajaram, numa também escassa literatura da especialidade, e para sua grande glória, num dos melhores romances de sempre escritos em português.
Até aos anos vinte, os Itas eram comandados exclusivamente por capitães ingleses, tal como a esmagadora maioria dos navios a navegar nos mares daquela altura, resultado do Britannia Rules.
Essa imposição acabou a tempo do Capitão Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso, mas ao serviço da navegação de cabotagem, comandar um Ita (e dos grandes) numa viagem épica de Os Velhos Marinheiros, narrada por Jorge Amado num livro que pode ser encontrado em qualquer livraria do mundo.
Boa leitura !.



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