O Atlântico Sul em português

 O grande jogo

Sem recursos suficientes para explorar a extensa faixa litoral do Brasil que nos coube pelo Tratado de Tordesilhas, e que depois fomos sucessivamente aumentando para o interior, a descoberta da bem sucedida adaptabilidade da  cana sacarina trazida da Ilha da Madeira na terra brasilis, e o apetite que a Europa tinha por açucar, expressa na cotação que o mesmo alcançava nos mercados, forneceu a parte fundamental do  nascimento do Brasil.

Mas ficava a faltar a mão de obra, já que nem Portugal, originalmente despovoado, e ainda por cima disperso por um extenso império ultramarino, nem o Brasil, muito escassamente povoado de população autóctone, possuíam gente suficiente para um procedimento como aquele.

A solução encontrada foi trazer a gente necessária de África, sempre  que  possível da África portuguesa, sempre que possível de Angola, sempre que possível de Luanda, num dos empreendimentos mais ignóbeis e nefandos de que existe memória, que foi a escravatura.

Estava contudo criado um sistema, mais do que económico, civilizacional, que permitiu efetivamente o nascimento do Brasil,  assente num produto trazido de uma ilha atlântica, plantado na América do Sul por mão de obra africana, transformado em açucar, transportado e vendido na Europa,  tendo por cenário o Atlântico Sul, e  feito por Portugal.

De tal forma era perfeito, apesar de injusto, este sistema, que não tardou a atrair a cobiça de outras nações europeias, sobretudo as mais poderosas, entre elas a grande potência emergente colonial que era a Holanda.

Os batavos, aproveitando a oportunidade da nossa perda de independência   para a Espanha dos Filipes, e apesar de não terem qualquer conflito com Lisboa, mas sim com Madrid, apelaram ao pragmatismo de que os amigos dos nossos inimigos, nossos inimigos são, e atacaram Pernambuco, a capital mundial do açucar em 1630, depois de terem feito o mesmo em 1624 na Bahia, e de terem sido rechaçados.

Os holandeses vão ficar no nordeste brasileiro até 1654, altura em que são expulsos do Recife pelos brasileiros, ou seja já pelos filhos da terra e não pelos portugueses, que por essa altura estão em conversações com os flamengos para comprar-lhes a sua partida, seguindo uma estratégia concebida pelo Padre António Vieira, o qual via na presença  da Holanda no Brasil uma ameaça à soberania de Portugal, e sobretudo a  ameaça da penetração e difusão do protestantismo, numa terra que os jesuítas reservavam para o seu projeto da República Teocrática, a qual com sede em Roma, seria o mais possível parecida com o reino dos céus.

Efetivamente, os brasileiros armaram um exército com forças locais vindas  de todos os lugares da colónia, reforçada por milícias índias e escravas, que vindo por terra atacaram em 1648-1649 nos terrenos pantanosos de Guararapes, nos arredores do Recife, a retaguarda dos holandeses, os quais  se  conservavam firmes de frente para o mar, convictos que estavam de que  a ameaça do exército libertador viria de Lisboa e pelo Atlântico.

Naquela altura o mundo já sabia que a triangulação diabólica montada pelos  portugueses no Atlântico Sul, funcionava perfeitamente: mão de obra escrava  de África, produção de açucar na América, e comercialização na Europa.

Natural, e felizmente, que a escravatura não foi inventada pelos portugueses. A sua prática perde-se na origem dos tempos e das coordenadas geográficas. Assenta nas mais variadas razões, mas sobretudo, no direito que sempre pareceu existir de os vencedores, ou os mais fortes, disporem das vidas dos derrotados, ou mais fracos.

O que os portugueses fizeram naquele cenário, e nos séculos XVI e XVII, foi erguer de forma muito eficiente um empreendimento assente naquele tripé, e que simultaneamente enriquecia Portugal, e permitia o nascimento do Brasil, considerada por Lisboa a terra do futuro, e muitos séculos antes de Stefan Zweig, ter afirmado o mesmo, quase a meio do século XX.

Ainda sobre a prática sórdida da escravatura, é interessante verificar que os  holandeses aportaram ao Brasil, imbuídos da religião protestante, com a vaga esperança de que houvesse outra forma de produzir riqueza sem recurso àquela degradação tolerada pelos católicos.

Mas logo no primeiro relatório emitido em 1638, a partir do Brasil, apresentado pelo Príncipe Maurício de Nassau, o grande nome da aventura holandesa no Brasil, ao Conselho dos XIX, instância máxima da West Indische Compagnie  (WIC), a Companhia das Índias Ocidentais, em Amesterdão, informa:

“Necessariamente deve haver escravos no Brasil, e por nenhum modo podem ser dispensados: se alguém sentir-se nisto agravado, será um escrúpulo inútil.”

E em 1640, Van der Dussen, homem vivido nos trópicos, sobretudo nas Molucas, ao serviço da Vereenidge Oost Indische Compagnie (VOC), a Companhia das Índias Orientais, e político influente de Roterdão, informa noutro relatório sobre a experiência brasileira:

“Sem negros nada se pode cultivar aqui, e nenhum branco  – por mais disposto ao trabalho que tenha sido na pátria – se pode dedicar no Brasil a trabalhos tais, nem mesmo consegue suportá-lo.”

Os holandeses vão ficar cerca de trinta anos no Brasil, nunca se adaptando como nós às agruras da vida naquelas latitudes. E sobretudo sabiam que estavam ali apenas para enriquecer Amesterdão e Roterdão, de passagem, por mais que pretendessem que fosse longa aquela passagem. Portugal estava no Brasil para construir o seu futuro. Ou melhor, o futuro de ambos. Nem mais.

As diferenças entre as maneiras de gerir o assunto do nordeste brasileiro foram sensíveis, assentando sobretudo na forma como ambos encararam a vida religiosa e civil. Na primeira os protestantes flamengos, ao contrário dos católicos portugueses,  foram tolerantes, mas na segunda, trataram com extrema rispidez os senhores dos engenhos moedores de cana e produtores de açucar, que por maiores que  fossem os lucros, viviam permanentemente endividados, fruto do fausto das suas importações de luxo europeu  e asiático.

Os holandeses tiveram o atrevimento de lhes cobrar as dividas, a eles que eram aparentados com os grandes de Lisboa, e a produção e a exportação entrou em declínio.

Já com os holandeses expulsos, o Padre António Vieira numa carta ao Conde da Ericeira, de vinte e três de Maio de 1689, define este estado de coisas à perfeição.

“Eles (os holandeses) nunca tiveram indústria para tratar negros, nem lavouras ou engenhos de açucar, e sem os lavradores portugueses nenhuma utilidade podiam tirar daquela terra (Pernambuco)”

É por estas razões que depois de terem beneficiado, enriquecido e aprendido com a nossa gestão ultramarina do Atlântico Sul, os holandeses não hesitam em atacar Luanda em Agosto de 1641, numa altura em que Portugal já tinha recuperado a  sua independência, em busca da fonte de mão de obra que pudessem encaminhar para o Brasil, ou para os seus outros empreendimentos tropicais.

Mas a coroa portuguesa estava ciente da importância do seu tripé atlântico, ao qual não podia faltar nenhum dos pés, sob perigo de um desmantelamento total.

Porque sem Angola não há Brasil. Pode ler-se num memorando do padre da Companhia de Jesus, Gonçalo João,  apreciado em 1646 pelo  Conselho Ultramarino.

Mas desta vez, quem vai expulsar os holandeses de Angola, é uma armada portuguesa,  que parte em 1647 de Lisboa com sete navios, é completada  no Rio de Janeiro com mais oito, para sob o comando do governador do Rio de Janeiro,  Salvador Correia de Sá,  zarpar da Guanabara a 12 de Maio do ano seguinte, e a 15 de Agosto de 1648, dia da  Assunção de Nossa Senhora, entrar na cidade de S.Paulo de Luanda.

Não poderia haver uma conjugação mais perfeita entre os três lados do Atlântico, pese embora a opinião do cronista Simão de Vasconcelos, reitor do Colégio  inaciano do Rio de Janeiro, testemunha ocasional dos preparativos da Armada, de acordo com a qual a reconquista de Angola não tinha sido decidida nem em Lisboa nem no Rio de Janeiro, mas sim no Céu.

Nesta estratégia deliberada de Portugal no cenário do Atlântico Sul, assenta a diferença maior da nossa expansão ultramarina, por oposição às outras duas expansões contemporâneas, a inglesa e a holandesa. Quando os ingleses, pouco satisfeitos com os lucros mercantis que Londres obtinha com a venda de tecidos para as principais praças europeias, viraram os seus interesses para o oriente e a Índia, em busca das especiarias e das mercadorias de grande valor, Portugal pouco conseguiu fazer para contrariar  esta conjuntura, mas quando os holandeses decidem apoderar-se do comércio atlântico do açucar, Portugal não descansa enquanto não os expulsa do Brasil e de Angola, obrigando os flamengos a rumarem também ao oriente, e a irem produzir o seu açucar para as Antilhas.

Portugal, o grande senhor do Atlântico Sul, voltava ao jogo!

 

 Terra Brasilis

Portugal, o grande senhor do Atlântico Sul, recuperou a sua independência no primeiro dia de Dezembro de 1640, e voltou novamente ao grande jogo.

O triângulo, Angola, Brasil, Lisboa, voltava à prosperidade, para alívio das  praças europeias, que viam novamente o comércio do açucar reposto na sua  normalidade, e nas mãos de quem percebia dele, os portugueses.

Naquela altura aproveitámos a situação, e a imensa riqueza detida, para nos concentrarmos na construção do Brasil, afinal a origem daquela prosperidade.

Deve-se notar que os holandeses não tinham atacado o Brasil, nem tinham qualquer interesse particular no todo do território, mas unicamente o nordeste brasileiro, e mais particularmente o rincão açucareiro, o negócio produtor do açucar, e  principalmente o exportador.

Da presença batava no Brasil, ficou uma vaga nostalgia e os olhos azuis que ainda se encontram em tantos crioulos no eixo Bahia-Pernabuco, e o reconhecimento de que podendo-se considerar que ao tempo a cultura flamenga atravessava uma fase notável, e que sobretudo a sua escola de pintura tinha uma qualidade inigualável no contexto europeu, os holandeses deixaram na colónia melhoramentos interessantes, e retrataram-na numa pintura documental que hoje pode ser observada nos grandes museus, e que nos permite a todos vislumbrar o  Brasil (o seu nordeste) de seiscentos. Da mesma forma trouxeram da terra,um conjunto de  artefactos e produtos, que foram enriquecer e ser mostradas nos gabinetes de curiosidades tão na moda na altura, divulgando o Brasil no mundo.

Ora, isto era precisamente o que Portugal não pretendia. Mesmo que possuísse as mesmas preocupações estéticas e científicas, materializadas na pintura e nas coleções de testemunhos, e provavelmente não possuía, a última coisa que Lisboa queria era o mundo de olhos postos no seu Brasil. O  Brasil era para esconder, não era para mostrar.

E para aqueles que ainda hoje alimentam a presunção do que é que seria o Brasil colonizado pelos holandeses, um nosso antigo antigo embaixador em Brasília, não conseguindo vislumbrar nada que permitisse garantir que fosse melhor do que é atualmente, identificou mesmo graves prejuízos, exemplificando:

O mundo consegue imaginar o que seria Garota de Ipanema cantada em flamengo?

Na realidade, não interessava aos holandeses o Brasil, aquela terra imensa, que só poderia ser colonizada à custa de recursos que também não possuíam.

Esse era um problema de Portugal, que nós resolvemos com responsabilidade, honra e brilhantismo.

Quando hoje se observa o mapa da América do Sul, e se constata que cerca de metade dos 17 800 quilómetros quadrados pertence a um único país, e que a outra metade é a dividir por doze, importa saber como é que se chegou a  esta situação.

O tamanho imenso do Brasil, e a sua unidade em torno de um território, um povo e uma língua, devem-se a uma série de fatores de entre os quais se  destacam os jesuítas, os bandeirantes, e a diplomacia, primeiro portuguesa e  depois brasileira.

Os jesuítas e os bandeirantes embrenharam-se pelo território imenso da América do Sul, muito para além daquilo que Tordesilhas conferia a Portugal, desenhando pelo interior as fronteiras do país, em busca de índios. Os primeiros para os salvar, e os segundos para os escravizar. Estes últimos, para além disso procuravam também riquezas minerais, o ouro que teimava em aparecer, e as esmeraldas que apareciam em abundância.

A diplomacia, pela ação sobretudo de dois homens: o português Alexandre   de Gusmão, e o brasileiro José Maria Paranhos, o Barão do Rio Branco.

Alexandre  de Gusmão, irmão de Bartolomeu, o padre voador, o mesmo que perante o rei de D. João V e a corte, apresentou a ascensão de   algo mais leve do que o ar, de entre as muitas atividades que desempenhou com brilhantismo, destaca-se a carreira diplomática, e neste campo teve a visão peregrina de que a solução para os conflitos permanentes entre Portugal e Espanha, e para a definição da fronteira entre os dois territórios, passava pelo acesso exclusivo de cada uma das potências a uma das duas grandes  bacias hidrográficas do continente: a do Amazonas ao norte e a do  Prata ao sul.

Isto pressupunha movimentações territoriais consideráveis, militares e políticas, nos  dois polos.

Já no que respeitava à delimitação das fronteiras, pressupunha igualmente a adoção do  principio do uti possideti, ita possideatur (como possuis, assim possuas), mais simplesmente conhecido por uti possideti, uma figura jurídica utilizada na fixação de patrimónios territoriais, e segunda a qual cada um dos lados em litígio fica com a parte que conseguir demonstrar como sua, na altura da avaliação e decisão.

Portugal e Alexandre de Gusmão, propuseram estas e outras medidas menores a Espanha em 1750, em Madrid, no tratado que passou à história com o nome da cidade e aquela data.

Foi um erro terrível para os espanhóis, pelo qual pagaram um preço elevado  na altura, e que os atuais estados sul americanos de língua espanhola continuam a pagar, nunca perdoando Espanha pela exiguidade e desconforto das suas fronteiras, quando comparadas com a largueza e harmonia do Brasil.

“Triunfó la astucia portuguesa sobre la torpeza y venalidade de los diplomáticos españoles”. Afirmou Efraim Cardoso no El Paraguay Colonial.

E Francisco de Andrade, “Eles heredaron de Portugal la habilidad, nosotros de España la despreocupación”.

Portugal apareceu em Madrid com o seu processo perfeitamente estruturado, segundo opinião insuspeita e independente de diversos historiadores internacionais, suportado em magníficos e rigorosos mapas, que ainda hoje  encantam quem os observa na Mapoteca do Itamaraty.

Os espanhóis apareceram sem mapas, ou quando os apresentavam estavam  errados.

Desconheciam os limites e o percurso do Amazonas, confundindo os braços  do grande rio, o intrincado da sua rede e das terras que banhava.

Portugal trocou o norte amplo e desafogado da Amazónia, pelo sul estreito do estuário do Rio da Prata, ficando na posse exclusiva daquele que é apenas (o que se desconhecia na altura, claro) o maior rio do planeta.

Mas não se pense que foi de ânimo leve que Portugal abandonou, por troca,  as suas possessões ao sul, sobretudo porque isso significava abandonar a  Colónia de Sacramento, e debilitar as fronteiras meridionais.

A paz ao sul, entre Portugal e Espanha, e depois entre Brasil e Argentina, apenas ia chegar definitivamente mais tarde, no século XIX, com a criação do Uruguai, o qual no espírito de Madrid e de  1750, se interpôs no estuário do Rio da Prata, entre estas duas nações.

Outra das particularidades interessantes daquele tratado, é que firmado, entre as duas potências ibéricas, que sozinhas controlavam a totalidade do continente sul americano, possuía no seu articulado um dispositivo que impedia que os condicionalismos, desentendimentos, agruras e conflitos europeus, transpusessem o Atlântico, colocando em causa a paz americana.

Naturalmente que este principio visava impedir a repetição de  episódios como o do ataque holandês ao Brasil, fruto da guerra entre Espanha e os Países Baixos.

Mas esta preocupação contudo não conseguiu livrar as Américas do imperialismo napoleónico, nos primeiros anos do século XIX, onde Portugal e Espanha tiveram uma vez mais destinos diversos. O primeiro conseguiu conservar a sua independência, com a transferência da corte, da capital, e sobretudo do exercício da soberania, para o Rio de Janeiro.

Espanha, não possuindo na América do Sul uma segunda casa como nós, perdeu a independência, e a Luisiana, a qual foi vendida pelos franceses aos  norte-americanos.

Mesmo assim Portugal ainda se viu abrangido pelas vicissitudes da política europeia do tempo, e inimigo de França por causa da amizade com a Inglaterra, e de Espanha por causa da inimizade com aquela, viu-se envolvido na Guerra das laranjas de 1801, em consequência da qual perdemos até hoje Olivença na Europa, tendo contudo o Brasil aproveitado a mesma conjuntura e os mesmos pretextos, para obter militarmente ganhos importantes ao sul. Uma vez mais Portugal sacrificava-se pelo Brasil.

O Tratado de Madrid de 1750, depois continuado e colocado em causa pelo de Santo Ildefonso em 1777, e por outros tratados complementares, foi muitíssimo influenciado pelo de Tordesilhas.

Este, firmado em 1494 dava a Portugal a posse das terras por descobrir, mas provavelmente já conhecidas, até  à distancia de 370 léguas a oeste de um meridiano de Cabo Verde, o que equivalia sensivelmente a um terço das terras do atual Brasil.

Os outros dois terços, foram arrancados em Madrid, à custa da herança dos  futuros países sul americanos de língua espanhola, depois de Portugal efetivamente ter ocupado, estudado e civilizado aqueles territórios.

E sobretudo naquela altura, o que acontece é também uma concordância tácita, não registada, entre as duas potências quanto à prioridade dos seus cenários geoestratégicos. O de Portugal o Atlântico Sul, o de Espanha, o Pacífico, iniciado na vertente ocidental do continente sul americano.

Foi pelo Pacífico que Espanha escoou grande parte da riqueza mineral de Potossi, no Peru, utilizando os portos de Arica e Callao, e fazendo depois chegar a prata ao Atlântico pelo isto do Panamá e pelo estreito de Magalhães, e do Atlântico até Sevilha. A rota do Rio da Prata, até Buenos Aires e daqui para Espanha, foi sempre um grande projeto, e curiosamente serviu bastante ao contrabando da prata naquela cidade.

Assim se Espanha abrandou voluntária e deliberadamente a sua vigilância nas  terras americanas que lhe pertenciam por Tordesilhas, Portugal não fez outra coisa com o seu quinhão que lhe cabia nas Filipinas.

Ou seja, as opções pelo norte amazónico ou pelo sul platense, expressas na  América pelas duas nações ibéricas, não eram mais do que o fruto das suas opções mundiais e globais, para grande proveito do Brasil, e infortúnio dos seus vizinhos.

Tornado independente em sete de Setembro de 1822, seriam os políticos, e sobretudo os diplomatas, brasileiros a prosseguir o extraordinário trabalho dos portugueses com vista à consolidação das dez fronteiras do Brasil. Apenas toda a América do Sul à exceção do Equador e do Chile.

O número elevado de fronteiras do Brasil, diz mais sobre a pulverização da área dos territórios das nações vizinhas, do que do tamanho imenso do Brasil. Afinal, o segundo maior país do mundo, o Canadá, tem apenas uma fronteira, e os Estados Unidos, duas.

No trabalho de delimitação das fronteiras do Brasil independente, no meio de uma mole relevante de diplomatas, sobressai a figura do Barão do Rio Branco.

Monárquico, filho do provavelmente mais importante chefe do governo de D. Pedro II, seria na república que iria revelar toda a sua grandeza de chanceler (a designação brasileira dos ministros dos negócios estrangeiros), ao aceitar depois de largos anos em postos diplomáticos europeus, a condução da política externa brasileira.

Quando em Paris, era visita assídua do nº 38 da Avenue du Roule, no subúrbio elegante de Neuilly, onde morava o nosso cônsul na cidade, José Maria Eça de Queirós, e onde se juntava a amigos fraternos comuns, como Eduardo Prado, Joaquim Nabuco e Domício da Gama.

Regressado ao Brasil para assumir os negócios governativos pátrios, chefiou o Itamaraty de 1902 a 1912, o famoso ministério dos negócios estrangeiros brasileiro, assim chamado por causa da casa e terreno que ocupava no Rio de Janeiro, mas que transitou com idêntica designação para Brasília, acompanhando a mudança da capital em 1960,  comendo e dormindo no seu gabinete, onde veio a falecer.

Rio Branco venceu com recurso a arbitragem internacional, todas as questões fronteiriças em que o Brasil se encontrava envolvido na altura com alguns gigantes da cena internacional, culminado com a integração no território brasileiro do imenso território do Acre amazónico, adquirido à Bolívia, ou melhor ao Bolivian Syndicate, depois de se constatar que o território interessava sobretudo a quem tivesse o controlo do acesso ao mar do território pelo Amazonas, ou seja o Brasil.

A incorporação do Acre, foi essencialmente a única alteração da geometria e área do Brasil, feita sem ser pelos portugueses.

O que é particularmente honroso para Portugal, e ainda mais se tivermos presente que por exemplo  a área que a Inglaterra deixou aos Estados Unidos, por altura da independência, corresponde a cerca de um décimo do atual tamanho da nação norte-americana.

 

Em português, entre iguais

O Obá do Benin, em 1824, foi o primeiro monarca do mundo a reconhecer a independência do Brasil.

Ele, e o seu vassalo, o Obá Agan, de Onim, atualmente incorporado a Lagos na Nigéria, cidade que muito provavelmente deve o seu nome à cidade algarvia do Sul de Portugal.

O reconhecimento africano da independência de um país sul americano, feita de um país europeu, espelhava bem a situação que se vivia no Atlântico Sul, criada pela política portuguesa, não ao sabor da adaptação ao circunstancialismo, mas resultante de um desígnio manifesto.

Portugal e Espanha jogaram na América do Sul, uma estratégia feita de interesses, prioridades e desígnios.

A Espanha interessava-lhe sobretudo o caminho do escoamento das riquezas minerais andinas pelo porto de Buenos Aires, numa mistura equilibrada do domínio do lado do Pacífico, e um acesso desimpedido ao Atlântico.

Portugal jogou tudo na formação do maior e melhor Brasil possível. Assente na produção e comercialização do açucar, necessitava do triângulo América do Sul, Europa, África, controlado, o mesmo é dizer o Atlântico Sul.

O Atlântico Sul em português, foi abalado no século XIX por dois grandes acontecimentos.

A independência do Brasil, e a abolição da escravatura.

Portugal foi o primeiro país do mundo a abolir a perversidade da escravatura,   em 1761. Como seríamos mais tarde o primeiro país europeu a abolir a pena de morte.

Contudo, questões práticas e operacionais do combate ao tráfico, e sobretudo a grande dificuldade que constituía para nós o encerramento daquela atividade ignóbil enquanto o Brasil não fizesse o mesmo, fez que efetivamente a escravatura só fosse definitivamente extinta em 1869.

No Brasil a escravatura foi abolida em treze de Maio de 1888. Depois  da independência ter sido alcançada em sete de Setembro de 1822.

Dois processos que se deveram ao povo brasileiro, mas de iniciativa imperial, dos dois Pedros imperadores, os dois únicos monarcas da América, do Alasca à Terra do Fogo, pai e filho. Pedro primeiro ofereceu ao Brasil a independência, e Pedro segundo a abolição da escravatura. Esta segunda, com enorme nobreza e sentido sacrificial, pois sabia que este gesto lhe ia custar a coroa, como efetivamente aconteceu no ano seguinte.

A independência do Brasil, subtraiu uma quota significativa do protagonismo de  Portugal nos assuntos do Atlântico Sul.

Os senhores dos engenhos do açucar do Recôncavo baiano e dos canaviais pernambucanos, e os fazendeiros do café do Vale do Paraíba, entre Rio e S.Paulo, passaram a ser abastecidos por negreiros brasileiros, quando não eram eles próprios acionistas do horrendo comércio.

Numa demonstração inequívoca de que a sordidez humana, desgraçadamente, é independente de quaisquer atributos, a cor da pele inclusive, alguns dos antigos escravos transportados para o Brasil, e que conseguiram alcançar a alforria, transformaram-se eles próprios senhores de  escravos, participando ativamente no comércio torpe, num e noutro lado do oceano.

Grande parte do comércio civilizado entre o Brasil e Angola passou a ser feito ainda mais por navios brasileiros, quando antes já era  desproporcional a sua quantidade relativamente aos navios portugueses.

Efetivamente, tomando por base as poucas séries estatísticas existentes e fiáveis, no período de 1735-1770, a origem dos navios atracados em Luanda  é maioritariamente brasileira. Cerca de 40% do Rio de Janeiro, 20% da Bahia  e outro tanto de Pernambuco, e apenas 15% de Lisboa, e o restante de outras origens.

Também é bem verdade, que a navegação à vela entre o Brasil e Angola, para além de mais curta, beneficiava de um regime de ventos melhor do que  aquele que soprava de Lisboa para Luanda.

Mas com a independência do Brasil, Portugal passa a recear, mais do que a difusão das mercadorias brasileiras em África, a difusão das ideias.

Isto está bem patente no tratado de 29 de Agosto de 1825, em que Portugal finalmente reconhece a independência do Brasil, decretada unilateralmente às margens do Ipiranga em 1822.

Os dois primeiros artigos do tratado, são duas peças notáveis de linguagem e prudência  diplomática, que definem as passagens das coroas de Portugal e do Brasil, e respetivas soberanias, da cabeça do pai D. João VI para o filho D. Pedro I, de  forma a não ferir suscetibilidades patrióticas e familiares, mas no terceiro, D.Pedro compromete-se a não aceitar proposições de quaisquer colónias portuguesas para se reunirem ao Império do Brasil, doravante independente.

O Brasil conseguiu cumprir o trato, com maior ou menor entusiasmo, mas sempre com grande deceção da comunidade de países africanos independentes, gradualmente maior, ao longo dos anos cinquenta e sessenta do século passado.

Curiosamente esta situação começou a alterar-se nos anos setenta, e com o  governo brasileiro autoritário militar, ultra conservador, o qual faz uma agulhagem para África, independente de questões ideológicas.

Era mais do que tempo do Brasil colher os frutos de todo o enraizamento africano na sua matriz constituinte, e dos laços que se estabeleceram entre os dois lados do Atlântico Sul, primeiro com a forte componente da infâmia da  escravatura, mas depois da sua sempre tardia abolição, de forma livre.

Ao longo da segunda metade do século XIX, e sobretudo depois da data gloriosa de 1888, foi cada vez maior o número de africanos que conseguiu regressar às suas terras de origem, ou dos seus antepassados.

Mas agora, com o passar de tanto tempo, e com as convulsões territoriais e tribais do continente, viram perdidos os seus lugares.

Na Nigéria estabeleceu-se uma comunidade imensa de ex-escravos alforriados, que para lá transportaram  os costumes, cultos, técnicas, arquitetura, que tinham no Brasil, e o mais importante, a cultura, alicerçada  como não podia deixar de ser na língua portuguesa.

Numa nação de nações como é por excelência a Nigéria, não encontrando esta gente  no regresso já a sua, autodenominavam-se brazilians. Ainda hoje os seus descendentes são facilmente identificáveis nas ruas de Lagos, os homens pelos fatos (ou melhor, ternos) de linho ou ganga, imaculadamente alvos e amarrotados, camisa branca, gravata verde, sapatos pretos e na cabeça o inevitável panamá. E as mulheres, essas são autênticas baianas.

E finalmente, chegados à contemporaneidade, em Brasília, às oito da noite do dia dez de Novembro de mil novecentos e setenta e cinco, as luzes do Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, estavam todas acesas àquela hora, a preparar o telegrama que chegou ao mais recente país independente, no primeiro minuto do dia onze.

O Brasil era o primeiro pais do mundo a reconhecer a independência de Angola.

Encerrava-se o grande jogo. O do Atlântico Sul em português, agora jogado por nações independentes e soberanas, entre iguais, unidos pela extraordinária língua portuguesa, num passado em grande parte comum, e sobretudo num futuro que tem tudo para dar certo.

E que não acaba aqui, nos instante fugazes desta nossa vida terrena, para  nós vagabundos oportunistas do Universo. Não.

Afinal Caraibebê-guaçu, o Grande Anjo, um pajé carijó, figura importante do Sul do Brasil, ensinava no início do século XVI que os caminhos para o Céu seguiam exclusivamente três itinerários: o primeiro passava pelos Patos, onde ele vivia, o segundo atravessava Portugal, e o terceiro passava por Angola.

Para mim que sou português nascido em Angola, esta não deixa de ser uma excelente notícia.

 



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