Dois mares, uma terra, dois mundos

Num dos primeiros dias de Agosto de 1876, um personagem imponente, em estatura e dignidade, aproximou-se da recepção do melhor hotel das  redondezas de  Bayreuth, na Alemanha,  e solicitou o quarto que tinha reservado.

Na ficha que respeitosamente  lhe estenderam, colocou o nome.

Pedro de Orleães e Bragança.

Estava ali para ver a sua obra, porque era um Bayreuth Patronatverein, um dos poucos e poderosos membros da associação criada por Richard Wagner para poder suportar naquela cidade a apresentação da sua obra, e para assistir à primeira integral do Ring des Nibelungen, ao lado de entre poucos outros, como Leon Tolstoi, Franz Liszt, Friedrich Nietzsche e Piotr Ilitch Tchaikovsky.

Quando se preparava para se retirar, o empregado delicadamente fez-lhe notar que faltava preencher a profissão.

Então, pegou novamente na caneta, e escreveu:

Imperador do Brasil.

Enquanto esta cena decorria, a milhares de quilómetros de distância, na América do Sul, os presidentes das repúblicas vizinhas do meu Brasil, como o imperador gostava de dizer, não se atreviam a sair das suas terras, entretidos que estavam a lutar uns contra os outros, ou mesmo contra a sua população, blancos contra colorados, conservadores contra liberais (em cujas fileiras lutou o coronel Aureliano Buendía), as províncias contra as metrópoles, o litoral contra o interior, a selva contra a montanha, os desertos contra os pântanos, o modelo centralizador da metrópole versus a autonomia das províncias.

A razão disto, residia e reside até hoje, num conjunto de motivações, todas apaixonantes, mas provavelmente deslocadas num trabalho como este, à excepção, da diferenciação profunda entre a América do Sul de língua portuguesa e  espanhola, introduzida pelos dois oceanos que banham o continente.

Estes dois lados do continente são constituídos, a ocidente pelo Pacífico, numa extensão de litoral de cerca de 9000 quilómetros, e a oriente pelo Atlântico, com cerca de 16000, incluindo o seu maravilhoso subúrbio que é o Caribe.

No Atlântico a terra mais próxima fica a pouco mais de 3000 quilómetros, enquanto no Pacífico fica a cerca de 15500 quilómetros.

Estas distâncias não condicionaram apenas os dois litorais, mas a sua influência penetrou profundamente terra adentro.

O Atlântico, descontado as excentricidades das três Guianas (servindo a Guiana Francesa de fronteira entre o Brasil e a União Europeia) é composto por duas grandes costas, a brasileira com cerca de 7500 quilómetros de extensão (que sobem a mais de 9000, com as reentrâncias, as praias, as baías, os mangues, etc.), e a argentina com cerca de 5000, e entre as duas, esse minúsculo enclave que é o Uruguai, com um dos mais importantes portos do mundo, Montevideu.

Mas enquanto no primeiro litoral podemos encontrar cerca de 50 portos, entre eles o maior porto da América do Sul, Santos, todos com excelentes condições, e potencial para existirem muitos mais, no segundo, vamos encontrar cerca de 20 portos, contando com o mítico Buenos Aires.

Os portos para os dois gigantes sul americanos acabaram por ser fundamentais para a sua génese, desenvolvimento e afirmação, e neste caso próximos, já que ambos os territórios nasceram sob o modelo produção/exportação.

As duas metrópoles colonizadoras, Lisboa e Madrid, e depois ambos os governos independentes, apostaram naquele modelo. O Brasil, cronologicamente, com o açucar, o ouro e o café, e a Argentina com a prata, os cereais e  a carne de vaca.

Os espanhóis encontraram o El Dourado, mal chegaram ao território na transição do século XV para o XVI, nas minas de prata de Potossi, sendo o metal transportado por comboios de mulas, animais e humanas, através da cadeia andina, e pelo interior do continente, até ao estuário do Rio da Prata, de onde pelo porto de Buenos Aires, seguia para Sevilha, chegando a Madrid aquela que os piratas ingleses on her majesty´s service permitiam.

O ouro no Brasil só apareceu nas Minas Geraes, cerca de dois séculos mais tarde, provocando a transferência da capital da Bahia para o Rio de Janeiro. Antes disto tinham sido os portos do nordeste a exportar o açucar, que geraram a civilização brasileira, como depois ia ser, já na transição do século XIX para o XX, continuado pelo café, exportado por Santos, deslocalizando a importância  económica e política do país para S.Paulo.

Mas se pelos portos era exportada a riqueza dos dois países, era importada uma riqueza ainda maior. Gente.

Até hoje a braços com uma densidade populacional baixa, os dois imensos territórios dependeram sempre de forma muito significativa da imigração.

No Brasil até ao século XIX, e na metade superior do país, até ao Rio de Janeiro, entrou um contingente de mão de obra africana, proveniente daquela verdadeira aberração e ignomínia que foi a escravatura. Na segunda metade do século XIX, e do Rio de Janeiro rumo ao sul, inicia-se a imigração livre e europeia, uma vez mais centrada no porto de  Santos.

Na Argentina a entrada de população estrangeira, nomeadamente italiana , alemã e espanhola, é constante e progressiva. Nos dias que antecedem a    primeira guerra mundial, 30% da população do país é estrangeira, e em Buenos Aires este número sobe para o dobro.

Do lado do Pacífico, a Cordilheira dos Andes isola a população do interior, e a  imensidão do oceano, a do litoral, fazendo que uma parte significativa do continente acabe por ter uma afinidade maior com as estatuetas da Ilha da  Páscoa do que com qualquer outra coisa.

Tudo isto facilitou uma desagregação social e política, quando não uma animosidade, provavelmente já latente entre os povos pré-colombianos, e que depois a administração colonial agravou.

No lado do Atlântico existe quase uma praia contínua, centrada em Ipanema (Et in Arcadia Ego), que associada a um estado civilizacional mais incipiente por parte da população autóctone encontrado pelos portugueses, e a aposta deliberada de Lisboa na construção do território, fizeram esta costa substancialmente diferente da contra-costa.

Sobretudo a grande diferença reside no facto do modelo político, económico e social de Portugal em relação ao Brasil assentar no triângulo América, África, Europa, ou mais precisamente Salvador da Bahia, Luanda, Lisboa, com distâncias suaves e equilibradas, Salvador-Luanda, cerca de 5600 quilómetros, Lisboa-Salvador, cerca de 6500, e  Luanda-Lisboa, cerca de 5800, capaz de suportar o primeiro modelo de negócio planetário, assente na mão de obra  africana, para produzir açucar no Brasil e  vendê-lo na Europa.

O afastamento oceânico e aproximação continental argentino, versus vivência atlântica e distanciamento continental brasileiro, acabou por moldar duas políticas de negócios estrangeiras distintas, mas paradoxalmente truncadas nas suas raízes.

Assim o Brasil adoptou de forma entusiasmada a Doutrina Monroe, segundo a qual os assuntos da (grande) América diziam respeito apenas aos americanos, aproximando o país de Washington, enquanto os argentinos fortemente influenciados pela imigração europeia, viraram-se para a Europa, e para o esplendor de Paris e Londres, intervalado no período da segunda guerra mundial, pelo fascínio musculado das potências do eixo Berlim-Roma, de onde era aliás oriunda uma parcela muito substancial do seu contingente de imigrantes.

Do lado do Pacífico, vamos também encontrar duas grandes unidades geográficas e políticas: O Peru, com um litoral de cerca de 2400 quilómetros, e o Chile, com cerca de 6500. O Peru, de milho, e o Chile, de cobre.

O Peru é porventura a pátria da América pré-colombiana, terra dos extraordinários incas, com realizações e manifestações surpreendentes, algumas delas denotando avanços superiores aos dos conquistadores, e que   legaram à humanidade o amontoado lunar que é Machu Picchu, e dos não menos extraordinários faladores machiguengas de Mario Vargas Llosa.

O Chile conseguiu resolver um dos problemas de simetria territorial que aflige as nações, com o equilíbrio entre o litoral e o interior, de uma forma única, que não volta a repetir-se no globo, abolindo pura e simplesmente o interior.

Ficam também no Chile, as importantes explorações mineiras cupríferas, buracos enormes, abertos pela terra do altiplano adentro .

Observadas no seu conjunto andino, estes imensos vazios em certos pontos da terra, parecem funcionar como contra-ponto à elevação dos picos noutros  pontos, nivelando desta forma a linearidade típica de qualquer horizonte, mesmo que rochoso.

Mas no Chile fica também um dos portos mais mitológicos do planeta, que só  o nome evoca logo a necessidade imperiosa de armar o saco de marinheiro e  zarpar: Valparaíso.

Rodeado de montanhas, com um casario sobre o qual parece que chove colorido, e refúgio de quem fazia a imensa travessia do Pacífico, ou a dobragem do tenebroso Horn, este porto merece plenamente integrar, com Buenos Aires, Montevideu, Santos, Cartagena das Índias, e Callao o grande contributo da América do Sul para o panteão dos abrigos marítimos da Terra.

A América do Sul que felizmente vive uma actualidade de paz e relativa prosperidade, teve os seus grandes conflitos motivados pelo acesso ao mar.

No Atlântico, entre 1864 e 1870, o Paraguai, com uma configuração e extensão territorial particularmente diferente da presente, envolveu-se numa  guerra que levou o seu nome, com os seus três poderosos vizinhos, Argentina, Brasil e Uruguai (Tríplice Aliança) precisamente para poder romper  um acesso ao mar. Não o conseguiu, e teve que fazer grandes concessões territoriais aos vencedores, sobretudo à Argentina.

No Pacífico, o Peru, a Bolívia e o Chile, envolveram-se na segunda metade do século XIX num conflito, herdado tal como o do Paraguai de problemas coloniais de distribuição de território, que acabou com a vitória do último, e com a ocupação por este do porto boliviano de Antofagasta, privando para sempre a Bolívia do seu mar. O melhor que se conseguiu depois, foi em 1904, quando em troca do reconhecimento perpétuo da ocupação do litoral boliviano, o Chile concedeu o acesso franco da Bolívia aos seus portos, e mais tarde ainda, quando com a intercessão da ONU e da OEA (Organização dos Estados Americanos), o Peru cedeu à Bolívia a utilização autónoma  do porto de Arica, com a respectiva operacionalidade, armazenagem, e cobrança de direitos alfandegários.

O mar é de tal forma importante na América do Sul, que o Patriarca, depois de ter praticado todos os crimes contra o seu povo, um dos quais a venda das cores da bandeira nacional, morre lentamente no Outono, depois de vender o mar, e deste ter sido transportado em peças numeradas, para o semearem longe dos furacões.



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