Em Tormes (a que alguns chamam Santa Cruz do Douro), na casa que foi de Eça de Queirós, e onde agora funciona a sua Fundação, na prateleira de uma das confortáveis salas, pode ver-se um prato de louça da VistaAlegre, pintado em tons acastanhados pelo Rei D.Carlos, e oferecido por si ao Conde de Arnoso.

O prato representa a Casa de S.Bernardo, em Cascais, actual sede da Marina de Cascais, casa que pertenceu a Bernardo Pindela, o Conde de Arnoso, secretário de D.Carlos.

Ali, Eça de Queirós passou dos momentos mais agradáveis da sua não muito longa existência.

Quase em frente à casa, ficam as muralhas da Cidadela, e no seu interior, aquela que foi a residência da família real.

Mas os grossos muros da fortaleza não foram suficientes para impedir o contacto afectuoso das duas famílias, e das duas casas.

Arnoso vinha da escola militar de engenharia, homem prático e culto, apto a prestar grande serventia e apoio ao seu rei, no país dos bacharéis em direito, de onde vinha o seu grande amigo  Eça de Queirós.

Para além da amizade, unia-os os serviços prestados na diplomacia.

Eça de Queirós era diplomata de profissão, optando pela carreira consular em vez da de embaixador, provavelmente porque naquela carreira conseguia os tempos livres que a sua obra literária necessitava, e os emolumentos que as suas finanças não necessitavam menos, sobretudo os do consulado de Paris, reconhecidamente o melhor posto para se servir a Pátria no estrangeiro.

O Conde de Arnoso, possuía uma grande ligação às Necessidades, o palácio e centro do governo pessoal de D.Carlos, sobretudo a partir do momento em que o monarca passou a viver e trabalhar ali, separado da Rainha D.Amélia e dos chefes dos dois partidos que se revezavam no poder.

O Conde de Arnoso, ali ao seu lado, a despachar no seu gabinete, Luís  de  Soveral, em Londres, embaixador na Corte de St.James, e Eça de Queirós em Paris, iam mantendo o rei a par dos negócios estrangeiros, sem ter que ouvir a opinião que o encarregado daquela pasta, e o próprio chefe do governo, tinham sobre o assunto.

E o Marquês de Soveral, que passava por ser o maior amigo do monarca britânico Eduardo VII, ainda lhe fornecia os charutos. Provavelmente da mesma marca que fumava o filho da Rainha Vitória, e de que havia de morrer.

Na última carta trocada entre os dos amigos, D.Carlos é explicito: os charutos chegaram e são ótimos.

Eça de Queirós e Arnoso, tinham para além disso, em matéria de assuntos diplomáticos, uma estranha cumplicidade com o oriente longínquo, e com o império do meio.

Eça depois de ter ficado aprovado com brilhantismo no concurso para a carreira consular, tinha sido colocado em 1872, em Havana, no seu primeiro posto no estrangeiro, mas para tratar da emigração ilegal, e quase escrava,  de um contingente numeroso de chineses que rumavam às plantações de açucar cubanas, utilizando como porto de embarque o então nosso território de Macau. Desta forma Portugal sentiu-se responsável por aquela gente, e deslocou para o Caribe, um cônsul em permanência, que desempenhou exemplarmente a sua missão.

Bernardo Pindela deslocou-se à China em 1887, numa comitiva governativa para celebrar com aquele país um acordo diplomático.

Da China, Pindela trouxe duas coisas.

Uma magnífica cabaia que ofereceu de presente ao amigo Eça de Queirós,e a alcunha de O Piquenês. Entre os íntimos, dizia-se que era porque para além de ser de baixa estatura, tinha ido à China, a Pequim.

A cabaia teve um destino glorioso, até chegar onde se encontra agora, numa sala da casa de Tormes, com uma janela imensa nas suas costas, e que abre para a serraria adorada pelo escritor.

Eça de Queirós, depois da ida para Havana, nunca mais voltou  a viver em Portugal, à exceção das suas frequentes e demoradas férias no nosso país.

O escritor foi para o estrangeiro para encontrar Portugal, e para poder escrever sobre ele, e sobre qualquer outra coisa, liberto da paixão que provocava no seu círculo de amizades, e da influência do quotidiano que se vivia no triângulo Rossio-Grémio Literário-Loreto. Ou, como Eça gostava de lhe chamar, “à esquina sagrada da Casa Havaneza.”

A viver em Paris desde 1888, na capital do mundo, e na última década do maravilhoso século XIX, Eça de Queirós quase não escreve uma linha sobre as vanguardas estéticas, científicas e culturais, e os movimentos artísticos que constituem a realidade parisiense, e que dali irradiam para o mundo, na literatura, na ciência, na  pintura, na música, na escultura, no bailado, etc.

Entre o escritório e a residência, na presença daquele frenesim de contemporaneidade cosmopolita, Eça dedica-se a ler as obras raras sobre Portugal, algumas adquiridas a bom preço nos alfarrabistas dos cais das margens do Sena, oriundas ainda das pilhagens feitas pelos exércitos napoleónicos nas bibliotecas dos solares portugueses, ou das agruras económicas vividas pelos exilados derrotados nas lutas liberais.

Com estas fontes, e com outras que mandou vir de propósito de Portugal, Eça escreveu um livro que é simultaneamente sobre o Portugal contemporâneo e o antiquíssimo, esse belíssimo A Ilustre Casa de Ramires.

Daquele tempo, e de quase toda a sua vida, o que nunca abandonou, como autêntico diplomata que era, foi o interesse pelos negócios estrangeiros.

Desde a sua colaboração em 1867 com o Distrito de Évora, até à correspondência a partir de Paris, o escritor conservou sempre um conhecimento atual e crítico sobre a política internacional.

Este interesse uniu-o ainda mais ao Conde de Arnoso, que com a sua presença assídua no gabinete de D.Carlos nas Necessidades, colaborou com o monarca na sua intensa atividade diplomática, por vezes bem mais do que os sucessivos governos gostariam, tirando partido do facto de ser primo, próximo ou afastado, de quase todos os monarcas da Europa, através da Avó  Grande que era a Rainha Vitória, e que muito em breve iriam trocar as discussões que tinham à mesa, entre brandis e charutos, por frentes de batalha, entre obuses, cargas de infantaria e gazes de mostarda.

O relacionamento dos três grandes personagens do Portugal finissecular, passava bastante por Cascais, e pela proximidade física e espiritual entre as  duas casas, a cidadela e a casa de Bernardo Pindela.

Eça de Queirós que tinha os seus superiores hierárquicos, e o próprio rei, reféns da sua imensa genialidade, e da afabilidade que demonstrava pelo círculo intimo dos que lhe eram queridos, passava o maior número de tempo  que lhe era permitido, em Cascais.

Quando me sento num dos bancos de madeira da alameda arborizada que  atravessa o jardim da Igreja de Nossa Senhora da Assunção, vejo sempre o escritor ali ao pé, a ler, ou a escrever no espírito, numa atitude patente à perfeição, em algumas das fotografias que nos ficaram dele.

Estes tempos amenos também não iam durar muito.

Eça de Queirós ia morrer em Paris, precisamente no dia seguinte à  solenidade de Nossa Senhora da Assunção de 1900, D.Carlos em 1908, barbaramente assassinado no Terreiro do Paço, e o seu fiel secretário, três  anos depois, deixou-se morrer por recusa a viver num mundo que já não era o seu, e depois de ter conseguido a melhor proteção possível para a desamparada família do escritor.

Mas quem hoje em dia passear em Cascais por entre aquelas paragens, consegue recuperar toda a atmosfera que foi deles, impregnada na paisagem, e registada na caligrafia nervosa e tombada da correspondência que Eça de Queirós nos deixou.

Numa carta enviada de Paris ao amigo Bernardo, com data de vinte e cinco de Julho de mil oitocentos e noventa e seis, Orfeu menciona a saudade com que penso na varanda de Cascais, e mais à frente, depois de evocar amigos e delícias, regressa à casa amada, nas noitadas  em que sob o silêncio e a penumbra propícia decidíamos os grandes problemas.

Como bem sabemos, os grandes problemas continuam por decidir, mas maravilhosamente, a varanda de Cascais também lá continua.

 



2 comentários em “Versos e Anversos do Mar”

  1. Belo texto, Artur, e primor de crônica com toda a redundância possível do significante e significado juntos, crônica do tempo, daquele do Eça, e do agora pelos convites que faz para visitar tanto o local impregnado de história quando os tantos episódios que pintastes tão bem. Me resta lembrar Fradique Mendes, mais precisamente em Carta do Brasil, em que o heterônimo coletivo escreve a Eduardo Prado…

  2. Manuel José Gonçalves diz:

    Muito bom!

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