O mar molda permanentemente o contorno dos países que têm a felicidade de o possuir.

Em África, estes, têm muitas vezes no mar a única fronteira lógica e harmoniosa, dado que as outras resultam de acertos em que não participaram.

O poder colonial dividiu os territórios africanos de forma injusta, e geralmente incompetente, conferindo unidades territoriais muito aproximadas a países, àquilo que eram reinos ou tribos, colocando sobre o mesmo território, bandeira e administração, povos que ancestralmente exibiam queixas mútuas e recíprocas, justificadas e injustificadas.

Este estado de coisas originou um desempenho deficiente da ideia de nacionalidade, e sobretudo conflitos armados gravíssimos, como por exemplo aquele que opôs no Ruanda os huntus aos tutsis.

O rigor das fronteiras ficou entregue à aridez das retas, um troço  perpetuamente paralelo ao horizonte.

Mas por mais paradoxal que possa parecer, algumas destas fronteiras retilíneas são mais consistentes do que as outras ditas naturais, uma vez que algumas destas tiveram por base acidentes (relevos, rios, lagoas, etc.) que nem sequer existiam, ou se existiam não era onde as cartas assinalavam. As potências coloniais, a braços com territórios com extensões várias vezes superiores às das suas pátrias europeias (o Congo de Leopoldo II, era 75 vezes superior à Bélgica!), apenas conseguiam ter levantamentos fiáveis umas tantas milhas ao redor das urbes que iam fundando para as suas próprias necessidades, ou quando tinham que reivindicar perante os parceiros e concorrentes europeus algum tipo de riqueza.

Contudo, se a ausência de mar condiciona culturalmente um território e um país, a  sua presença, de forma alguma passa despercebida, tantas são as implicações que produz. E sobretudo em África.

E muito sobretudo em Angola, um país com uma geometria territorial quase perfeita, onde as latitudes e as longitudes variam de forma proporcionada, e onde a linha de costa, ou mais propriamente o seu distanciamento aos diversos pontos do território, define duas atitudes culturais.

A história do país, que durante quase cinco séculos fez parte da nossa, revela a existência de dois movimentos pendulares. Um centrípeto que puxa o país para África, para o interior, e outro, centrífugo, que empurra o país para fora, para o litoral e para o Atlântico.

O primeiro traduz o  compromisso com o passado profundo do continente africano, onde muito provavelmente o Homem terá nascido, e o segundo o do passado recente, os tais cinco séculos, com raízes mais tenras, mas mais compridas, uma vez que chegam a Portugal e ao Brasil.

Pensamos todos, que é desejável que estas duas tremendas massas culturais coexistam pacificamente, com os seus valores próprios, para proveito de Angola, nosso e do mundo.

Era expectável, e quase um desígnio, pese embora o desafio substancial que isto significava, que as novas nações africanas nascidas do surto independentista da segunda metade do século passado, conseguissem se não resolver, pelo menos atenuar o problema, reordenando as unidades geográficas de acordo com as raízes ancestrais.

Mas tal não foi conseguido, em parte pela deteção e exploração das  enormes riquezas minerais, que abundam no subsolo africano, e pela cobiça dos poderes instituídos pela onda das independências, a que não foi estranha a assessoria das antigas potências coloniais. Se à incerteza da prospeção, ainda se juntasse a da propriedade do solo, e da mudança de interlocutores, então para os grandes gigantes da indústria mineira talvez fosse mais fácil irem  explorar um qualquer dos anéis de Saturno.

A incursão que a República Democrática do Congo faz pelo norte da Zâmbia a dentro, por alturas do Shaba, tem todo o ar de uma carta mineira, e das utilizadas nas explorações denominadas de lavra ambiciosa, onde a mina pura e simplesmente segue o filão para onde ele for. Estamos a falar da antiga região mineira do Katanga,onde durante anos existiram as minas de cobre mais ricas do mundo, o suficiente para dar origem a um conflito sangrento que levou aquele nome, por alturas da independência do Congo.

Aliás o Congo, para além desta excrescência, este prolongamento, quase uma palhinha de refresco com a qual sorve a sua (ou dos outros?) riqueza mineral, exibe uma segunda, por alturas da foz do Zaire, onde sorve uma riqueza muito mais importante:o mar.

Antes pelo contrário, já como jovens nações africanas, algumas delas aderiram a políticas territoriais egoístas, no sentido de impedirem o acesso dos seus vizinhos ao mar.

Uma vez mais, a estes comportamentos pouco edificantes, não foi alheia uma guerra a meio do século XX, que os os Estados Unidos da América e A Rússia, os dois grandes herdeiros do imperialismo europeu do século XIX, decidiram generosamente deixar para aqueles que a quisessem travar nos seus nomes, uma guerra que apesar de se desenrolar em África, recebeu o incrível nome de Guerra Fria.

Assim, não é de estranhar que os grandes organismos mundiais com influência no continente africano, a ONU e a OUA (Organização de Unidade Africana) apesar de reconhecerem um determinado grau  de injustiça na atual delimitação territorial do continente, e no consequente sistema fronteiriço entre nações, herdada de uma conjuntura estranha aos africanos, coloca o principio da inviolabilidade de fronteiras como inquestionável.

Num continente tão martirizado por guerras, é sobretudo preferível que os acertos das delimitações sejam gradualmente feitos por acordos comuns entre as diversas partes, à mesa das negociações, do que no terreno, de armas na mão.

Mas urge acelerar estas negociações, sobretudo em nome das quinze nações aprisionadas no interior de África, numa área de quase sete milhões de quilómetros quadrados, cerca de um quarto dos 30 milhões de metros quadrados do continente.

Em África, o mar é raro, e precioso para aqueles que o possuem, como pode ser observado através de uma das personagens do excelente romance recentemente publicado de Eduardo Agualusa, A sociedade dos sonhadores involuntários,  que depois de ter esfarelado a memória, ficou apenas com uma recordação fugaz da infância em Benguela.

E a última coisa que diz antes de morrer é:

“Agora só me lembro do mar.”



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