Cais triangulares, navios quadrados e contentores redondos. Sob o signo de Jack London

Sensivelmente a meio do ano de 2015, dois grupos de operários e técnicos, os melhores nas suas especialidades, estavam decididamente empenhados em concluir as suas tarefas, separados por cerca de 14 000 quilómetros.

No Panamá, tratava-se de terminar o alargamento do canal, para deixar passar os maiores navios do mundo, um contributo extraordinário para a navegação mundial, e na Coreia do Sul, nos estaleiros de Daewoo, de concluir a construção do MSC – Zoe, o maior porta-contentores do mundo, e que já não conseguia passar no canal.

Esta estória, que parece o roteiro de um filme de Groucho Marx, ilustra à perfeição a situação atual do comércio marítimo, e não representa, qualquer distração ou ignorância por parte dos milhões de pessoas que em todo o mundo vivem do negócio marítimo e portuário, e muito menos da parte daqueles que investem ali, na esperança de recuperarem o capital investido multiplicado pelo maior número  possível.

Provavelmente estão a desenhar-se estratégias patrocinadas por investidores  de grande envergadura, não muito diferentes daquela meia dúzia de empresas que domina atualmente o mercado dos contentores, que visam redesenhar rotas e escalas, tornando-as acessíveis a um segmento restrito, que irá colher os benefícios da nova situação, e por maiores que sejam os investimentos que realizaram na sua criação.

Pode estar em causa a normalização e padronização alcançada nos últimos anos, com os equipamentos, dispositivos e processos marítimos, tendentes à ambicionada universalização da atividade marítima, agora, que se torna difícil defender por meio das esquadras navais, as particularidades (em alguns casos, excentricidades), e os privilégios típicos do imperialismo.

Um pouco paradoxalmente, atualmente o principio da  universalização e da individualização, convivem em simultâneo, no comércio marítimo. O primeiro nas excelentes ferramentas, sobretudo informáticas, que facilitam significativamente a atividade, como a janela e a fatura única portuária, já implementadas com enorme sucesso, ou como os sistemas de automação da gestão e movimentação de contentores, quase sem interferência de manuseamento, em fase de projeto e de aperfeiçoamento, ou com a conceção e implementação de procedimentos, que com recurso a uma gramática comum, agilizam substancialmente as múltiplas funções imprescindíveis ao  quotidiano de um porto, mas igualmente o segundo, o da individualização, também patente no desajuste entre as dimensões e geometria dos navios e dos cais, e evidentes nas acessibilidades e nas áreas acostáveis.

Desde os seus primórdios, que o comércio marítimo tem uma muito expressiva  componente cultural e cosmopolita, onde reside aliás parte relevante  do seu fascínio, e de promotor da história e da civilização universal, que foi sendo satisfeita de maneira empírica, gradual, e quase inconsciente, única forma que permitia a um exportador muçulmano indonésio, e um importador protestante norueguês, compartilharem o interesse pela mesma carga.

Este interesse passou a ser materializado e promovido, nos últimos anos de forma explícita, com as grandes organizações e conferências de comércio mundial, congéneres e interdependentes, com as de caráter político, ambas suportadas na globalização, e fortemente incrementadas pelo desenvolvimento tecnológico, sobretudo da informação.

E é precisamente a partilha da carga comum, que une a oferta e a procura, estejam onde as duas estejam, nos mais recônditos lugares do planeta, que pode  vir  a ser obstaculizado com eventuais restrições de acesso.

Os portos estão inseridos em cadeias extensas e complexas de agentes que interagem entre si, em sucessivos processos onde por vezes clientes e fornecedores, trocam de papéis, o que implica um certa morosidade na manobra de reorientação das cadeias, em direção às novas facetas do negócio portuário.

A necessidade de diferenciação, e de inovação, são características por demais importantes na gestão portuária, ao ponto de em determinadas circunstâncias e conjunturas, poderem ultrapassar a padronização, onde assenta uma parte fundamental do sucesso atual do comércio marítimo, e poderem gerar linhas e portos, exclusivos e restritos. Contentores específicos, navios exclusivos, cais cativos. Ou de outra forma: caís triangulares, navios quadrados e contentores redondos.

Os sinais que os antigos capitães dos navios procuravam no horizonte próximo ou distante, um espumar diferente da crista das ondas, uma coloração subtil do por do Sol, um agitar de panos a bordo, uma estrela fora do lugar, que lhes permitia antes de ninguém (e daí o seu prestígio, inerente à própria condição de capitães) perceber a mudança, e colocar a embarcação de feição com esta, também têm que ser procurados, por diferentes que sejam agora os sinais, por aqueles que estão à frente da atividade portuária, de maneira a alinharem o rumo com a mudança,

Podem estar em jogo estratégias de abertura de novos canais, como por exemplo na Nicarágua, privados, e apenas acedidos pelos membros de clubes ainda mais privados, com as suas próprias regras, para cais, processos, navios e contentores.

Mas o perigo da desarmonia entre aqueles que trabalham no negócio portuário, também é contrabalançado por exemplos quase comovedores de versatilidade e compatibilidade.

Como aquele anúncio à porta de uma casa de aprestos marítimos, nas redondezas  de um conhecido porto da costa oriental de África, que oferecia defensas que também podiam ser utilizadas como pneus.



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