Sob a superfície do mar há uma extrema estranheza. Um mundo radicalmente diferente de nossa habitação. Uma estranheza e espanto que em receio se interligam, como em sagrado e vivo espaço, expresso apenas artisticamente, junto ao inefável.

Trata-se de um estado transitório entre as possibilidades ainda informes de realidades a configurar.

A visão requer então adquirir uma abertura para explicitar significações que só  a arte almeja penetrar:

(…) Mudam aqui [no mar] a luz a sombra a cor

E também faces e gestos se modulam

Segundo elaboradas estranhezas (…).

Sophia Mello Breyner Andresen, Navegações XI (excerto),

Lisboa, Caminho, 1996 (1982)

E esta abertura acontece pela receção dos novos sinais, sintomas e seres além das circunstâncias habituais e terráqueas. Este olhar para um desconhecido, penetrando um outro plano de realidade, presenteia referências que apenas o mar é capaz de propiciar. Neste outro poema observamos a mesma estranheza, o mesmo espantoso ser de outra realidade:

(…) eu chegava do mar, dos seus confins submersos,

(…) em companhia de sereias e tritões

Edmundo de Bettencourt, «As meninas velhas» (excerto) in Rede Invisível,

Lisboa, Assírio & Alvim, 1999 (1930-1933)

Dragões, sereias, tritões – ou anémonas, conchas e búzios –  são elementos extraordinários que emergem à perceção daqueles a quem a divisão terra-mar é tão drástica como a distância entre a vida presente e uma sua alternativa além do conhecido, elementos dados pela abordagem a esse outro que é o mar, tanto em superfície como na sua profundidade. O que está em questão é a fantasmagoria provocada pelo mar à imaginação, quase indecifrável, pois tem resistido a entrar sistematicamente, isto é, a ser relacionada no âmbito do humano. Por si só as simbologias a respeito destes elementos não me parecem suficientemente esclarecedoras do que podemos considerar para o homem na sua aprendizagem relativamente ao modo do mar. Se me for possibilitado, este estudo que se tem prolongado em diversas partes exploratórias, e se ele se tornar capaz de explicitação, procurará expor uma organização cognitiva e sentimental das descobertas do que é ser humano perante o mar e com o mar. Procurando entender a realidade marítima numa textura metafórica talvez se encontrarão possíveis cruzamentos e inclusões numa partilha de caraterísticas comuns e de diferenciação entre domínios tão diversos, entre humano e o mar. As metáforas produzidas pelas referências marítimas são a conexão possível entre o primevo mar e subjetividade humana, e aqui temos tentado encetar a colheita dessas experiências onde vive o mar pela voz poética.

Os elementos do  mundo marítimo, anfibológico, ambivalente, tanto na sua superficie como no mundo submarino, extremado em suas expressões, atravessa-nos o olhar, o sentir e o compreender humanos, com suas inversões (as plantas são animais / E os animais são flores) e contradições (mundo silencioso / agitação das ondas) como nos mostra exemplarmente este poema:


No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

Sophia Mello Breyner Andresen, «Fundo do Mar» in Obra Poética I,

Lisboa, Caminho, 2001 (1944)

         Eis um caleidoscópio espantoso… que quase parece mostrar a impossível síntese ou organização das impressões subjetivas causadas pela diferenciação alternativa da vida no amplexo mar – monstruoso. Estemundo intrínseco ao ser-mar, mesmo que pressentido e expresso de vários modos poéticos, apresenta contudo tipicidades, como se suspeita nos pretéritos estudos aqui apresentados. Como monstro ou estranheza, em cujo vórtice os portugueses penetraram cientificamente e com sua vida, as impressões de nossa vivência com o mar são colhidas persistente e intemporalmente na poesia, do mais longínquo ao mais recente enfoque português. Mas, se apartados terra e mar, primevo elemento antes do haver humano, e sendo os seres dos mares mais primitivos em relação aos da terra, como pode o mar confluir numa semelhante textura de realidade com o humano? Considerando este desgarramento, importa aqui lembrar de novo António Ferreira, talvez o mais pungente separador das realidades terra-mar, devido à sua pessoal e trágica experiência:

(…) Quem cometeu primeiro

ao bravo mar num fraco pau a vida

de duro enzinho, ou tresdobrado ferro

    tinha o peito, ou ligeiro

juízo, ou sua alma lh’era aborrecida.(…)

(…) A que mal houve medo

quem os monstros no mar, que vão nadando,

com secos olhos viu? Que o céu cuberto

   de triste noite, e quedo

sem defensão, c’o corpo só esperando

está a morte cruel, que tem tão perto?

                               Se Deus assi apartou

com suma providência o mar da terra,

que a nós, os homens, deu por natureza,

   como houve homem que ousou

abrir por mar caminho (…)?

(…) Um o céu cometeu;

outro o ar vão experimentou com penas

não dadas a homem; outro o mar reparte

 que por força rompeu.

Senhor, que tudo vês, que tudo ordenas,

pera Ti só chegarmos dá-nos arte.

António Ferreira, «A ûa nau d’armada em que ia seu irmão Garcia Fróis»

in Poemas Lusitanos, 1598

Todavia, facto é, na realidade marítima a poesia descobre, com o véu do fantástico, o que promete a fantasia: Uma especial série de possíveis significações que facilitam o desvendar da humana subjetividade. Sob que aspetos o mar se nos revela a nós e de nós? É esta a questão que tem pretendido orientar estas exposições. Falta, porém, pesquisar e interpretar na recolha poética, com sistematicidade, os acontecimentos humanos que a partir do mar nos auxiliam a partir de seu objeto-ser o nosso desvendamento subjetivo, por experiências decisivas de algumas caraterísticas coexistentes ou discrepantes, humanas e marítimas. O pensamento terá de percorrer as metáforas poéticas provenientes da experiência do mar e indagar significados pela aprendizagem que intenta realizar. Num exemplo: O estudo da poesia revela a fragilidade humana pelo acordar o pavor e o prumo humano, ali onde confuso e de vida mais que incerta, no terror onde nenhum remédio pode valer, ali nos:

(…) balanços que os mares temerosos

Deram à nau, num bordo os derribaram.

Três marinheiros, duros e forçosos,

A menear o leme não bastaram;

Talhas lhe punham duma e doutra parte,

Sem aproveitar dos homens força e arte.

(…)[Os] altíssimos mares, que cresceram

(…) sobre as nuvens os subiam

As ondas de Netuno furibundo;

Agora a ver parece que desciam

As íntimas entranhas do Profundo.

Noto, Austro, Bóreas, Aquilo queriam

Arruinar a máquina do mundo (…)

(…) Vendo ora o mar até o inferno aberto,

Ora com nova fúria ao céu subia,

Confuso de temor, da vida incerto,

Onde nenhum remédio lhe valia (…)

Luís Vaz de Camões, Lusíadas, VI, 1572

Trata-se de um texto universal que revela o homem perante as situações limite. E eis onde se revela mais prementemente o homem, podendo alcançar um prumo alinhado à transcendência, se a coragem sobressaindo da frágil e mortal humanidade se levanta num «generoso ânimo e valente» (Camões, Lusíadas, I). O mar, tão outro de nosso primitivo elemento terra, revelando por sua ingente força o cenário de incerteza até ao desconcerto de nossa condição, pode  despertar-nos a face própria humana, se no seu terrível poderio, no alto receio que se nos infiltra, reconhecemos vantagem à dignidade pessoal, independentemente da nossa própria condição desfavorável em dúvida, fatalidade e mortalidade. Aí, nesta condição de terror envolvente sentimo-nos veleiro sem governo e com o destino totalmente incerto tanto quanto temido, como surge neste excerto:

(…) Ó meu veleiro doido, sem governo,

a caminho, talvez, do céu, do inferno,

sobre espumas e asas de gaivotas.

Fernanda de Castro, «…Sem Bússula, Sem Leme…» (excerto) (1976), in

 “70 anos de poesia” de Fernanda de Castro,

Lisboa, Publicações Eng.º António de Almeida, 1989.

         A voz do mar apresenta, como já observámos várias vezes, aspetos monstruosos, aspetos que humanamente são desmedidos, extraordinários, isto é, não inscritos vulgarmente na ordem humana. Mas é este precisamente o que nos pode proporcionar uma via de compreensão do humano, difícil de penetrar além dos labirínticos e ordenados dias e horas. Através das explorações sensoriais paradoxais sentimos tanto o bramir de horríssono modo (Bocage, Cantata a Leandro) como sinal dos temores mais altos, como também acedemos do mar a uma doce e moribunda expressão, como sentimento e cognição de saudade, de desgarramento, provocado pelo distanciamento tanto do ser querido como da vida sonhada:

Voz do mar, mysteriosa; (…)
– Ó voz moribunda e dôce
Da minha grande Saudade!
Voz amarga de quem fica,
Trémula voz de quem parte…
(…)

António Botto,«Passei o Dia Ouvindo o que o Mar Dizia» in Canções,

Lisboa, Presença, 1999 (1941)

No entanto, anterior à voz expressiva do mar se incluí nele um silêncio anterior à linguagem (especialmente à portuguesa linguagem), um silêncio segredo dele e de nós:

(…)[N]uma paixão secreta,

escondida atrás da boca (…)

ecoa o mar (…)

só pancadas das palavras (…)

No encéfalo parecem ser a voz do mar (…)

e da língua, a silabar dentro da boca.

Nunca chamámos o mar nem ele nos chama

mas está-nos no palato como estigma.

Fiama Hasse Pais Brandão, «Foz do Tejo, um País» in Cenas Vivas,

Lisboa, Relógio D’Água, 2000 (1997)

Desta instância anterior à articulação da linguagem, o mar urge não apenas o sabor de nossa própria língua como disse Fiama Brandão e como dissera Vergílio Ferreira, semelhante também, se atentamos as características descritas de nossa língua por Francisco Rodriges Lobo na Corte na Aldeia.

Todavia, ele contém ainda outras secretas dimensões, como o bojo de uma subjetividade humana dispersa:

(…) um fundo

de desperdícios, uma dimensão

espaçosa cheia de cavername

solto, que me obriga

a ranger como uma arte

os meus ossos de poeta (…)

Fiama Hasse Pais Brandão, «Considero o poema o mar» (excerto)

in Obra Breve. Poesia reunida,

Lisboa, Assírio & Alvim, 2006 (1976)

Tal permite pensar que no seu desenvolvimento em autoconhecimento o sujeito pessoa poderá encontrar possibilidade de sentido, se alcançar um diálogo infinito entre significações e referências, através do ser mar, que historicamente e na língua nos sabe a português. Ficará ainda para outros estudos uma talvez feliz síntese das equações metafóricas do mar como gramática poética e, possivelmente, revelador de aspetos centrais da possibilidade humana.



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«Foi Portugal que deu ao Mar a dimensão que tem hoje.»
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Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto.
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