Tanto quanto marítimo e atlântico, Portugal é do Sul.

Uma afirmação como esta, justifica-se pelo facto de a ideia de Sul ser igualmente precisa – pelo rigor das coordenadas geográficas – e relativa – de três lugares, um está simultaneamente a Norte e a Sul dos outros dois – e pela notável unidade do povo e do território português.

O Sul de Portugal vem desde antes de Viana do Castelo até depois de Tavira, espalhando-se entre Douro e Guadiana: o Forte de Monção e a Ria Formosa. Abarcando, claro, Açores e Madeira.

Sul único, que se estende da costa à raia espanhola, de cima a baixo, e não o Sul que supostamente começa na outra margem da Ponte Vinte e Cinco de Abril.

Viemos do Sul, o mesmo que deu a nossa Europa atual, dos arredores de Roma, do latim e do direito, do vinhedo e dos olivais, numa altura em que os do Norte dificilmente se distinguiam no meio das florestas de carvalhos.

E partimos para o Sul, para o emaranhado florestal dos trópicos, ou a secura dos areais, beneficiando dos restos da civilização romana, até encontrar a oriente outras civilizações exuberantes. 

Para o Sul, para lá da barra do Tejo, partimos no século XV, para regressar já no último quartel do século XX. 

Desde 1415, quando a primeira embarcação portuguesa se fez ao mar que o rumo foi o Sul. Próximo, como Ceuta, ou distante como seria depois a Índia.

É bem verdade que os outros povos, como os ingleses e os holandeses também iniciaram a sua aventura ultramarina pelo Sul, mas nenhum destes se fixou aí como os portugueses, pelo menos até à aventura dos ingleses na Austrália.

Logo no século XVI, e ao longo deste, quase dez mil mulheres portuguesas desembarcam no Oriente, em conformidade com a política de expansão demográfica traçada por Afonso de Albuquerque, nem sempre com o aplauso do Terreiro do Paço, para quem aquela (ou qualquer outra) gente fazia falta, num reino perpetuamente carente de população.

Mas as mulheres inglesas apenas vão aparecer na Índia a meio do século XVIII, e para seguirem um padrão de vida exatamente idêntico ao que tinham na Old Albion.

Para além da sombra imensa do Sul, os trópicos constituíram igualmente um território de atração e fixação, particularmente bem explicado por Gilberto Freyre, o Mestre de Apipucos, com o seu (e nosso) luso-tropicalismo.

A quase-teoria do luso-tropicalismo, identifica a nossa afinidade com os trópicos, pelo contacto relevante da população, mesmo antes da fundação das duas nacionalidades, com o mundo judaico e muçulmano estabelecido na Península Ibérica, sobretudo com o segundo, e a sua expressiva plasticidade para se adaptar a outros horizontes, e até incorporar em si os padrões culturais dos povos aparente ou efetivamente dominados, desde que se conserva-se o religioso.

No caso dos árabes o islamismo, no caso português o cristianismo.

Por muito tempo, durante a epopeia marítima ultramarina portuguesa, esta fez-se mais em nome de Roma do que de Lisboa, e em muitos locais do império, os portugueses eram conhecidos e denominados apenas por cristãos.

A Reforma, no limiar do século XVI, iria confundir os espíritos e as mentalidades, e mais ao menos por esta altura, ingleses e flamengos iam aparecer nas mesmas paragens, e revelar que se não havia dois Cristos, nem dois Céus, havia pelo menos duas maneiras de lá chegar.

O Brasil é o Sul português por excelência, com os seus 93% de território a Sul do Equador, e 92 % nos trópicos.

O Brasil português, posto embora Portugal tenha iniciado e ocupado o país em todas as direções, no círculo que cobre os quatro pontos cardeais, e no extremo Sul tenha tido a posse de territórios que depois teve que ceder, e que já não foram incorporados ao património herdado pelo novo país independente, como seja a Colónia de Sacramento e o acesso ao Rio da Prata, no Brasil, a presença portuguesa é esmagadora e identifica-se com a enorme massa continental que o país ocupa nos trópicos, entre o Oiapoque a 03º 50’ 35’’ Norte, e o Rio de Janeiro a 22º 54’ 10’’ Sul.

Este Brasil termina magnífico e esplêndido, no Rio de Janeiro, a capital dos trópicos.

O Rio de Janeiro é cultural e economicamente uma cidade portuguesa. Os portugueses, entre outras coisas são proprietários das padarias, das empresas de camionagem e dos botecos.

Como resultado, há ainda não muito tempo, quando ao domingo o Vasco da Gama perdia no Maracanã, na segunda-feira, o Rio acordava sem pão, sem transportes e sem cafezinho.

A poucos quilómetros do Rio de Janeiro, na ultrapassagem do Trópico de Capricórnio, a 23º 26’ 14’’ Sul, o Brasil deixa de ser um país tropical.

S. Paulo, fundada como Piratininga em 1554, pelos missionários jesuítas de Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, evoluiu de forma diferente e é hoje uma cidade de forte presença italiana, japonesa e alemã, para além de portuguesa claro, e sobretudo brasileira.

O Sul dos portugueses, é uma característica cultural e transmite-se, por vezes por forma subtis e surpreendentes.

Thomas e Heinrich Mann, o primeiro, o extraordinário escritor da Montanha Mágica, de Os Buddenbrocks, José e os seus irmãos, Doutor Fausto, e Morte em Veneza, entre outras obras magistrais, Prémio Nobel da literatura em 1929, e o segundo, não menos excelente, com trabalhos como a novela Professor Unrat, que depois Josef Von Sternberg, filmou em 1930, como O Anjo Azul, com a diva Marlene Dietrich no papel de um diabo platinado, os dois irmãos, regularmente pegavam nas suas bicicletas e partiam de Lubeck na bordadura do Báltico, rumo ao Sul. Para Itália, que foi sempre os trópicos dos alemães.

Os críticos e estudiosos das suas obras, gastaram páginas e páginas, a tentar explicar aquelas viagens em homens e intelectuais tão profundamente germânicos, a que nem sequer faltavam os olhos azuis, tendo Thomas Mann, chegado a doutrinar sobra a diferença entre cultura (Kultur), que era o que tinham os alemães, e civilização, que era o que tinham os outros. Se bem que anos mais tarde, a ascensão do nazismo ao poder, o tenha obrigado a rumar aos Estados Unidos, e a rever as suas conceções.

Mas isto até ao primeiro dos estudiosos das suas obras descobrir, que era muito mais do que o midi europeu, mediterrânico, o que os irmãos procuravam.

Era o Sul. O Sul autêntico, onde a mãe deles, Júlia Mann, da Silva Bruhns em solteira, tinha nascido. No Brasil, entre Angra dos Reis e Paraty, uma excrescência do paraíso que emerge na costa brasileira, conforme notou Américo Vespúcio, quando ali navegou em 1502, e registou: se existe paraíso na Terra, não deve estar muito longe destes lugares.

Júlia, era afinal uma senhora com raízes tão portuguesas, que era crioula.

Nos diversos formatos que o Império Ultramarino foi adquirindo ao longo da História, fruto dos condicionalismos políticos e militares, próprios e alheios, a porção de Sul foi sempre esmagadoramente maioritária.

E como consequência, quinhentos anos depois, quando as vicissitudes políticas impuseram a desmobilização tropical, foi do Sul que chegaram as embarcações com um povo, que continuaria a ser magnificamente português, europeu, e do Sul.

Mas deixamos no Sul o nosso maior tesouro e testemunho, a língua. O português é a língua mais falada no mundo que fica ao Sul do Equador.

Finalmente, regressando ao início, o Sul pode ser qualquer lugar.

E a pátria, muito mais do que o local onde cai a chuva, como os africanos acreditam ser.

Ubi Bene, Ibi Patria

Onde se está bem, é aí a Pátria.

Ou seja, no Sul.



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