Num dos primeiros dias de Setembro de 1910, um norueguês chamado Amundsen (o que naturalmente significa pouco para a clareza desta estória) dirigiu-se aos Correios da Madeira, não muito longe do Golden Gate, e mandou expedir um telegrama onde se podia ler:
BEG TO INFORM YOU FRAM PROCEEDING ANTARCTIC.
E depois, em vez de assinar com o seu nome próprio, Roald, que ficava mais barato, insistiu no AMUNDSEN.
Regressou ao seu navio, o Fram, ancorado na baía do Funchal, deu ordem de zarpar, e quando o piloto lhe perguntou o rumo, disse:
Sul
O piloto ainda quis saber de quanto sul é que se tratava, e Roald Amundsen, disse:
O mais possível
Mas não era suficiente.
Então Amundsen utilizou a simplicidade das coisas que não possuem a menor possibilidade de engano:
Latitude noventa
Já com o navio a escorregar pelo horizonte, pensou que àquela altura, o telegrama já tinha sido lido por diversas pessoas, uma delas, um homem que também tinha tomado o mesmo rumo.
O Capitão da Royal Navy, Robert Falcon Scott.
Mas estava enganado. O telegrama expedido da Madeira, apenas alcançou Scott, um mês depois, quando este chegou a Melbourne na Austrália.
O telegrama provocou alvoroço no mundo inteiro, porque Amundsen (1872) tinha largado de Oslo no início de Junho, para rumar ao norte, e continuar aí uma série de expedições, enquanto o Terra Nova de Scott, mas sem este a bordo, permanentemente envolvido em problemas de logística e de angariação de fundos, tinha zarpado de Cardiff em 15 de Junho de 1910, com o objetivo de alcançar o Pólo Sul. Depois de diversas escalas para aprovisionamentos vários, um deles de cavalos, a embarcação deixa a Nova Zelândia a 29 de Outubro, continuando para sul.
Sem que, contudo, esta rota parecesse evidentemente primordial. Na realidade a expedição do Terra Nova, era porventura a melhor que alguma vez tinha navegado naqueles mares gelados sob o ponto de vista científico, apetrechada com especialistas de física, astronomia, química, geologia e zoologia, meteorologia, magnetismo, etc.
O objetivo negociado com os patrocinadores, tinha sido a recolha dos melhores dados e resultados. E se a chegada ao Pólo Sul em primeiro, fosse um destes, tanto melhor.
Apesar de ser em parte genuíno, pensa-se que este estatuto foi marcado e divulgado à posteriori, e serviu sobretudo para justificar a derrota de Scott na corrida.
Depois de terem ficado revoltados com a atitude de Amundsen, que interpretavam como uma traição a Scott, num gesto bem britânico, as bolsas de apostas de Londres ficaram ao rubro.
Os dois homens compartilhavam uma amizade ténue feita de personalidades bem diferentes, e assente em léguas e léguas de viagens contemporâneas, muitas delas nas rigorosas latitudes polares.
Scott, confiante que era o único candidato à glória antártica, (sem que Amundsen, nunca o confirmasse) tinha comunicado ao norueguês parte dos seus projetos para alcançar o objetivo. Um daqueles, a utilização de tratores mecânicos para o deslocamento nas superfícies geladas, e que seria precioso para Amundsen registar algo que ele próprio nunca deveria utilizar, no caso de pretender ter sucesso no seu empreendimento.
Amundsen apostou nas experiências bem-sucedidas, enriquecidas por improvisações pertinentes.
Apostou em esquiadores noruegueses, com skis adaptados, trenós e cães. Mas estes, em vez da tradicional composição de dois lado a lado, simultaneamente em série e em paralelo, iriam dispostos num leque amplo. E depois, os cães, à medida que os trenós iam ficando mais leves pelo consumo dos mantimentos, e uma vez cumprida com generosidade a sua missão, podiam ser comidos, à moda das noites e dos dias perenes dos horizontes escandinavos, constituindo a proteína indispensável sobretudo para os trajetos de regresso.
A par de outros fatores menos expressivos, mas cujo somatório acabou por se tornar relevante, o sucesso da expedição norueguesa ficou a dever-se principalmente a duas coisas: a aposta nos cães como meio de transporte, e a escolha de um caminho para o pólo, mais curto, pese embora mais acidentado.
Só em 14 de Janeiro de 1911 é que Amundsen chega à Antártica, fundeando na Baia das Baleias, para começar quase de imediato a construir uma acolhedora casa de madeira, a cerca de 4 quilómetros do Fram.
O Terra Nova tinha chegado ao outro lado da Baía das Baleias, a 4 de Janeiro. E a 18, também tinham a sua cabana construída. Mas não começavam da melhor maneira. Tinham ficado instalados quase 100 quilómetros atrás da expedição norueguesa.
A 26, o Terra Nova, faz uma viagem exploratória pelas redondezas, e no regresso dão de caras com um grupo de Amundsen, e o encontro, mesmo sem os dois líderes presentes, é cordial. E ainda bem, porque seria a última vez que as duas expedições se encontraram.
Amundsen e os seus homens saíram para a sua primeira sortida a sério, a 10 de Fevereiro, e para uma coisa importantíssima. A instalação dos três depósitos intercalares entre o Pólo Sul e o Fram.
Depois de sucessivas saídas, todas com o propósito de treinar soluções para as diferentes situações previstas, sobretudo quanto ao relacionamento entre os homens e os cães, e de aguardarem pelos dias menos maus, a equipa que ia rumar à latitude noventa sul, constituída por Amundsen e mais quatro, iniciou a sua marcha a 19 de Outubro de 1911.
Entretanto a expedição de Scott, também realizou uma série de viagens com a finalidade de instalar os diversos depósitos de mantimentos e combustível, indispensáveis para a viagem de ida e volta (sobretudo esta) ao pólo, e de regresso ao velho mundo, no meio de uma série de peripécias, algumas com risco de vida, e que fizeram com que alguns depósitos não ficassem exatamente nos locais combinados, o que acabaria de ser importante para o resultado da expedição.
Em finais de Abril, a expedição preparou-se para passar o melhor possível o inverno (suprema ironia) antártico, e a 6 de Junho de 1911 comemorou com uma festa, os 42 anos de Scott.
Este decide que a viagem para o objetivo, seria feita por dezasseis homens, que a uma determinada altura passariam a doze, divididos por três equipas de quatro, uma das quais faria a viagem para latitude 90º.
O primeiro grupo parte a 24 de Outubro de 1911, e apenas a 3 de Janeiro do ano seguinte, à latitude 87º, é que Scott escolhe os cinco homens que vão tentar tocar na glória. Ou seja, acrescentou mais um homem ao número inicialmente previsto, e mesmo sabendo que os aprovisionamentos contemplavam apenas os primitivos quatro.
A 17 de Janeiro de 1912, Scott chega finalmente ao Pólo Sul. Mas já na véspera, e através de binóculos, tinha avistado a bandeira norueguesa, que Amundsen tinha deixado no local.
Na realidade Amundsen e os seus homens, tinham chegado ao Pólo Sul a 14 de Dezembro de 1911. Fizeram-se fotografar, e realizaram várias medições, em diferentes locais e a diferentes horas. Alguma devia ser correta.
A 18 de Dezembro, iniciam a viagem de regresso, depois de terem deixado para os ingleses na tenda utilizada, uma carta simpática, e a melhor coisa que se podia deixar a alguém ali, naquele local: mantimentos.
A 25 de Janeiro de 1912, chegaram ao acampamento base, e a 30 de Janeiro, o Fram zarpa da Baía das baleias, e da Antártica, rumo a casa e à glória.
Dias antes, a 18 de Janeiro, Scott também inicia a vagem de regresso, com duas certezas na mente. Tinha falhado o objetivo da sua vida, e dificilmente ia regressar vivo, ele e algum dos seus homens, para contar ao mundo o seu falhanço.
Sabia do estado desorganizado em que tinham ficado os depósitos de mantimentos, deslocados dos locais projetados e com víveres insuficientes.
Assim, com a sua escrita preciosa e ao melhor estilo vitoriano, tratou de redigir no seu diário o seu testemunho para a posteridade, elogiando os companheiros, e não esquecendo a má sorte e a adversidade.
O que até é bem verdade, como se pode ler naquelas páginas, e nos registos de ventos e temperaturas feitos, que permitem aferir as condições excecionais de agressividade a que o grupo foi sujeito durante o regresso, e onde perdem quase de imediato um homem.
Entretanto, o grupo de resgate, não parte uma vez mais na data acordada, desta vez porque o chefe da missão meteorológica, precisava daqueles homens para uma campanha de experiências.
Abandonado a si próprio, mais os seus homens, Scott regista a 11 de Março, que faltam apenas 88 quilómetros para aquilo que podia ser a salvação, com a chegada a um depósito, mas apenas tem mantimentos para mais uma semana.
A 17, os quatro homens acampam, e um deles sai da tenda, informado “vou só lá fora, mas posso demorar algum tempo.”
À boa maneira do melhor que a literatura inglesa nos habituou, Scott conclui o episódio no diário: “e desde então nunca mais o vimos.”
O grupo, agora de três homens, ainda consegue colocar-se novamente em movimento, mas a 18 quilómetros do depósito ONE TON, que Scott tinha decidido transferir para 48 quilómetros mais a norte do que o inicialmente previsto, a 20 de Março, faz a última paragem, e apenas para morrer.
A corrida ao Pólo Sul tem alimentado um manancial de informação, uma parte significativa para tentar evidenciar as razões do sucesso de Amundsen e do fracasso de Scott, e alguns entram mesmo pelas particularidades das diferentes marinhas de onde os dois homens procediam: a marinha mercante norueguesa e a armada britânica.
Assim, o primeiro tinha beneficiado da disciplina prática e pragmática da marinha de comércio, enquanto o segundo, tinha ficado refém dos códigos rígidos e da disciplina hierárquica, da marinha de guerra.
Uma coisa é certa, pela leitura dos diários, é que a bordo do Terra Nova, vivia-se um quotidiano hibrido, onde os procedimentos do capitão, um oficial da Royal Navy, conviviam com as regras dos paisanos.
Scott viu o seu lugar na história evoluir de um mártir, vitima do mercantilismo que suportava o seu rival, para um trapalhão que devia unicamente aos seus erros o insucesso da sua missão, para finalmente estabilizar no lugar que desfruta hoje, de um homem que sofreu o inenarrável, que se atrasou geralmente, quer na escolha dos locais dos acampamentos, quer nas datas das partidas das surtidas, que dispersou esforços e atenção, por observações científicas antárticas, contrariamente a Amundsen, que se focou exclusivamente na chegada à latitude 90º sul, e a quem faltou good luck.
Amundsen, uma vez colocado no pedestal dos vencedores, também viu a sua imagem migrar do oportunista comerciante, que cobrava pelo que fazia, ao invés do oficial da Royal Navy, que se movia exclusivamente pelo dever, para um planeador lúcido e de extrema robustez, muito hábil esquiador, que viu os seus planos concretizarem-se sucessivamente.
Quando soube da morte do seu rival, Roald Amundsen, numa declaração que tinha tudo para ser sincera, afirmou que “Renunciaria de bom grado a qualquer honra ou dinheiro, se desta forma pudesse ter salvo Scott da sua terrível morte.”
Para iluminar eternamente a sua figura heroica, apenas faltava também uma morte à altura.
Encontrou-a no extremo oposto daquele onde tinha alcançado a glória, no Pólo Norte, a bordo de um hidroavião, quando tentava salvar a vida de outros exploradores polares, presume-se que em 18 de Junho de 1928, e o seu corpo nunca foi encontrado.
Atualmente não restam dúvidas sobre a extraordinária grandeza dos dois homens, e dos seus respetivos grupos de companheiros, e por isso é inteiramente merecido que a estação cientifica polar norte-americana, instalada a 89º 59’ Sul, a escassos 100 metros do pólo geográfico, e o local habitado mais ao sul na Terra, ostente o nome Estação Pólo Sul Amundsen-Scott.
A equipa de resgate do Terra Nova apenas deu com a tenda e os corpos dos infelizes, em 12 de Novembro de 1912.
Pela posição dos corpos e pela leitura dos diários, presume-se que Scott tenha sido o último a morrer, e provavelmente em 29 de Março do ano de 1912.
Os diários indicavam que a causa aparente das mortes tinham sido o frio e a fraqueza extremas. Mas não registavam a verdadeira causa.
Aqueles homens tinham morrido de tristeza.
6 comentários em “Rumo: Sul”
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Formidável!
Muito obrigado, caro Pedro Correia, pelo seu comentário tão estimulante.
Cordialmente, Artur Manuel Pires
Como outros, um artigo admirável!
Caro Filipe Cordeiro, muito obrigado pelo seu comentário. É sempre estimulante e gratificante o registo de que somos lidos, e apreciados.
Cordialmente, Artur Manuel Pires
Muito bem escrito e documentado. O jantar atrasou-se mas não consegui parar de ler. Muitos parabéns.
Muito obrigado, caro amigo Pedro Noronha. Espero que o jantar não tenha ficado prejudicado.
Um abraço, Artur Manuel Pires