Depois de termos dado a notícia no número de Novembro passado do Estudo sobre a Concorrência no Sector Portuário, da Autoridade da Concorrência, exactamente intitulada, «O Estudo em que Ninguém se Revê», julgando-o já esquecido, eis senão quando o reencontramos, afinal, em debate bem vivo e cheio de vigor.

Há fenómenos em Portugal que, apesar de recorrentes, não deixam nunca de surpreender, pela perplexidade e pelo enigma, tal como, uma vez mais, sucede com o Estudo da Autoridade da Concorrência sobre a Concorrência no Sector Portuário, onde, sob o aparente e mais diáfano manto da mais nobre, equânime e desinteressada busca da verdade, só da verdade e nada mais do que da verdade, o que sobressai e fica, antes de mais, são sempre os mesmos seculares preconceitos de suspeita, quando não mesmo absoluta desconfiança e condenação, da livre iniciativa, o que vale por dizer, do real e efectivo funcionamento do mercado.

Vejamos porquê e como.

Antes de mais, um primeiro e devastador pré-conceito: a concorrência faz o mercado e o mercado nada mais é que a concorrência.

O que é a concorrência e o que deveria cumprir à Autoridade da Concorrência enquanto Autoridade da Concorrência?

Concorrência significa, essencialmente, a liberdade de qualquer agente, dispondo de um mesmo conjunto de informação acessível a todos, poder entrar no mercado, em qualquer mercado, sem quaisquer outros específicos entraves que não os colocados, seja por que razão for, igualmente a todos.

Cumprirá à Autoridade da Concorrência garantir tanto esse pressuposto quanto zelar adicionalmente pela não ocorrência, ou pronta eliminação, quando surjam, de quaisquer práticas nocivas ao bom e livre funcionamento do mercado, como a cartelização, abusos de posição dominante, dumping, ou qualquer outra das muitas e bem conhecidas práticas que escusado será perder tempo a citar.

Tão só isso e apenas isso é o que faz que a concorrência seja concorrência e funcione como tal. O mercado, porém, é mais do que isso, residindo o seu fulcro não apenas na concorrência mas, através da concorrência, ou seja, do livre encontro de interesses entre todas as partes, conduzir a uma fixação de preços que, facultando crucial informação sobre a melhor alocação de recursos, a todos permite uma maximização da sua satisfação, seja imediata, seja mediatamente.

Tão simples e elementar quanto isso.

Porém, o Estudo, não obstante todo o louvor e enaltecimento da importância conferida à mais ampla concorrência, nas suas recomendações finais, não deixa de aconselhar uma diminuição das rendas variáveis sob a garantia e obrigatoriedade de a mesma passar, integralmente, ao longo da cadeia de valor, até aos utilizadores finais.

Difícil contestar, como agora se diz, a aparente «bondade» de tal proposta. Mas será realmente assim tão «bondosa» ou estamos mesmo perante uma tão perigosa quanto perniciosa proposta?

Imaginemos, por um momento, a situação em que uma Administração Portuária decide, de facto, diminuir as rendas variáveis.

Admitamos, num primeiro caso que a dita Administração Portuária, seguindo a sábia proposta ou conselho da Autoridade da Concorrência, impõe, com êxito, a tal integral repercussão da referida diminuição do valor das rendas variáveis ao longo de toda a cadeia de valor.

O que tenderá a suceder?

Muito pouco, sobretudo em termos de concorrência ou de mercado, uma vez todas as relações tenderem a manter-se exactamente as mesmas, salvo a diferença de níveis de valor. Sim, os preços finais tenderão a diminuir na proporção, como se pretende e é principal objectivo da Autoridade da Concorrência, em nome de uma ideia de competitividade, no mínimo, como veremos também adiante, suspeita, mas pouco mais.

Admitamos agora, num segundo caso, decidir a mesma Administração Portuária diminuir o valor das rendas variáveis, seguindo a mesma proposta da Autoridade da Concorrência, mas sem preocupação de qualquer imposição de consequente repercussão da mesma ao longo de toda a cadeia de valor.

O que poderá suceder?

Sem certeza, é no entanto admissível que, perante rendas variáveis mais baixas, possa haver incentivo a novos investimentos por parte dos operadores, procurando estes uma maior eficiência, uma maior competitividade, uma maior conquista de mercado, bem até como uma possível manifestação de interesse e entrada de terceiros operadores que, até aí, pelo valor das rendas variáveis anteriormente pagas, não manifestavam interesse nem estavam dispostos a entrar. Não há possibilidade, neste caso, até bastante mais plausível, de assim se conduzir também a um real aumento de competitividade do próprio porto? Não é garantido que assim seja, evidentemente, mas só a possibilidade de assim poder ser não deveria fazer-nos pensar e ter tudo isto em devida consideração? Porque se entende e se parte sempre do princípio que os respectivos operadores, perante uma diminuição do valor das rendas variáveis, mais não fariam senão aproveitarem a mesma para aumentarem os seus lucros em equivalenteproporção e nada mais? Sem uma forte, correctiva e moralizadora intervenção do Estado, é o marasmo e o puro lucro a regra?

Faz sentido tanto incentivar a concorrência e apelar, em simultâneo, a uma imposição de preços, ou à sua limitação, conduzindo, no mínimo, a uma liminar destruição do mercado e, por junto, à própria concorrência que tanto se pretende, acima de tudo, preservar e incentivar?

Porque sucede tudo isto?

Aqui, uma vez mais, o raciocínio é algo intrigante.

Para a Autoridade da Concorrência, como se afigura legítimo deduzir por tudo quanto se acaba de expor, o preço, muito mais do que uma determinação do mercado, é, em última instância, uma determinação, mais ou menos unilateral, mais ou menos livre, mais ou menos aleatória, dos respectivos agentes, ou operadores, tendo sempre em vista a obtenção do máximo lucro possível, sem mais, tendo como único limite à sua arbitrariedade, a concorrência, entendendo-se esta também no estrito âmbito de uma concorrência por preço, também, sem mais.

Nesse enquadramento, por entender a Autoridade da Concorrência sofrer o sector portuário nacional de um problema de falta de competitividade, identificando como causa os níveis de preço praticados, quando a sua maior, muito legítima e nobre preocupação, sem ironia, é exactamente ultrapassar e resolver essa suposta falta de competitividade, assumindo concomitantemente constituir-se a concorrência como o único factor passível de poder limitar a arbitrariedade dos respectivos agentes e operadores na determinação dos referidos preços e conduzir a um possível abatimento dos mesmos, não pode a solução encontrada ser senão a de se propor e impor, pelos meios possíveis, um aumento da concorrência a par de uma necessária intervenção adicional do Estado, correctiva e moralizadora, uma vez crer-se, concomitantemente, ser a primeira condição necessária mas não, em absoluto, suficiente, assim se justificando e exigindo igualmente a segunda.

É a premissa formulada apodicticamente e não tendo o Estudo, em momento algum, como objecto a análise da mesma competitividade nem exponha e menos ainda demonstre em que âmbito, enquadramento ou condições tal falta de competitividade é um facto mensurável, passível da correspondente prova, dir-se-á ferido de petição de princípio?

Em rigor, sim, mas isso não é o mais grave. O mais grave é mesmo parecer não se ter em linha de conta outros factores de competitividade que não mesmo o preço.

O preço é, sem dúvida e por definição, um factor de competitividade mas está longe de ser, necessariamente, o único, exclusivo e o mais decisivo factor. Múltiplos outros factores concorrem, como se sabe, igualmente para a determinação do grau de competitividade como, no caso dos portos, a eficiência, o tempo de trânsito, a disponibilidade, para referir apenas alguns poucos mais.

Para além disso, como o Estudo também deixa entender, a formação de preço não corresponde nunca nem tão só e exclusivamente à soma simples de factores materiais, tornando assim possível encontrar um valor, ou intervalo, reputado como justo e legítimo, assim justificando igualmente uma qualquer intervenção administrativa do Estado para repor essa suposta justeza ou legitimidade do mesmo. O preço é sempre um preço de mercado, ou seja, um valor ao qual um determinado número de pessoas ou entidades estão dispostas a adquirir um determinado bem ou serviço. Nem mais, nem menos. Se demasiado elevado, a consequência é haver um menor número de pessoas ou entidades dispostas a adquirem esse mesmo bem ou serviço. Apenas isso, simplesmente.

Mas não significa um preço demasiado elevado um menor grau de competitividade?

Abstraindo agora tudo o mais, por definição, sim. Mas a pergunta é esta: qual o agente ou operador que, independentemente do mercado irá, de motu próprio, determinar um preço demasiado elevado com a suposta ilusão de maximizar um imaginário lucro que, como não poderá deixar de saber, nunca poderá alcançar uma vez esse valor em excesso não conduzir senão a uma perda de mercado? Serão os agentes ou operadores assim tão loucos para sacrificarem toda a competitividade a troco de um ilusório lucro nunca alcançável?

A suposta irracionalidade económica dos agentes ou operadores, cegos por uma busca de maximização de lucro a todo o transe, não só não se afigura crível como não pode ser aceite senão também por pré-conceito não menos devastador também.

Porque assim sucede, i.e., porque raciocina a Autoridade da Concorrência, , uma vez mais, como se assim fosse?

Mistério. E grande perplexidade.

Dir-se-á simplificamos excessivamente, em parcas e cruéis linhas, vasto e sério Estudo?

Em parte, sim, sintetizando para melhor fazer sobressair as suas principais linhas de subjacente raciocínio, mas, cremos, sem excesso nem, menos ainda, qualquer deturpação.

E se assim é e quanto aqui se deduz está correcto, como cremos, o que se diz é que, com a melhor das intenções, visando, com certeza, o melhor dos mundos para os portos nacionais, a sua maior competitividade, no fundo, levando à letra quanto o Estudo da Autoridade da Concorrência afirma, expõe e propõe, estar-se-á a destruir o mercado, a destruir a própria concorrência que tanto se pretendia incentivar e, por fim, a própria competitividade que tanto se enaltece e visa aumentar.

Quer-se aumentar realmente a competitividade dos portos nacionais? Liberte-se o mercado, sem medo, sem temor.

Nem sempre o mercado funciona bem?

Funciona, o mercado funciona sempre bem, o que nem sempre funciona bem são os agentes que actuam no mercado, estejam em que lado estejam. Mas por isso mesmo é que existem os Reguladores e outras instâncias, incluindo os Tribunais. Os mercados, evidentemente, não são feitos de santos mas pior do que eventuais práticas nocivas dos menos santos, é interferir administrativamente no funcionamento do mercado, porque o destrói inexoravelmente, irremissivelmente. É exactamente isso que a Autoridade da Concorrência pretende que aconteça?

Deixe-se ao mercado o que é do mercado, aos homens o que é dos homens. Confundir ambos os planos é o pior que se pode fazer. Acaba-se sempre por destruir o mercado sem que daí advenha algum benefício para os homens com a agravante de um prejuízo certo absolutamente garantido.

Porquê ainda hoje esta espécie de visão de quase maniqueísta luta entre o bem e o mal, com os altruístas servidores do Estado de um lado e os egoístas servidores do vil metal do outro? Não estão todos, representantes do Estado, agentes económicos e operadores, imbuídos de uma mesmo espírito, de uma mesma finalidade, maximizar a competitividade, maximizar o negócio, maximizar os benefícios, maximizar os lucros?

O que poderia ser pior que um excesso de lucros de agentes e operadores? A sua desistência, a sua incapacidade de desenvolvimento e evolução, a sua falência.

Que importa se os agentes e operadores lucram muito, mesmo excessivamente? É isso que importa, é isso que importa ao Estado supervisionar ou tão só, sempre e exclusivamente garantir, no caso, o máximo desenvolvimento e evolução dos portos, a par da maximização da sua eficiência, da sua competitividade, sendo tudo isso uma única e mesma coisa?

Que importa se agentes e operadores lucram muito, mesmo excessivamente, queira isso dizer o que queira dizer? Se assim for, não tornará o sector portuário nacional ainda mais atraente? E tornando o sector portuário mais atraente, conduzindo à entrada, ou desejo de entrada, de novos agentes e operadores, não significa tudo isso um aumento da concorrência como é objectivo primordial da Autoridade da Concorrência? E não conduz sempre um aumento da concorrência, como até a própria Autoridade da Concorrência afirma, a um aumento da competitividade, como se pretende? Não é exactamente isso que todos queremos e necessitamos?

Porquê, então, tantos conselhos que só podem conduzir a resultados inversos?

Mistério, grande mistério, grande perplexidade e ainda um enigma mais: porque se aventura um Estudo como o Estudo da Concorrência no Sector Portuário, a Autoridade da Concorrência a ir muito para além do objecto que, aparentemente, deveria ser o seu, ou seja, de análise estrita, pura e dura, das condições de concorrência no sector portuário, o que seria já muito meritório, propondo quanto não pode deixar, a ser aceite, de minar, por completo, o verdadeiro significado de mercado, o verdadeiro sentido da concorrência, as mais necessárias condições para uma evolução do sector portuário com vista a uma maior e mais efectiva competitividade, destruindo assim também as suas melhores intenções e até algumas virtudes que o próprio Estudo inegavelmente possui também?

Difícil de compreender.

Mais difícil ainda de explicar.

Muito difícil de aceitar.

Em Portugal existe um Governo com um Primeiro-Ministro que delega, no caso, na Ministra do Mar, as necessárias competências de governo respeitantes ao Sector Portuário, onde se inclui a responsabilidade de nomeação das respectivas Administrações Portuárias que negoceiam, estabelecem e determinam os respectivos contractos com os respectivos actores e agentes portuários, observando, com toda a certeza, as superiores orientações da Tutela, não deixando os respectivos contractos de serem visados, inclusive, pelo próprio Tribunal de Contas, para além, evidentemente, de existir agora, igualmente, uma Entidade Reguladora como a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes que não deixa, evidentemente, de possuir as necessárias prerrogativas de fiscalização e supervisão.

Neste enquadramento, que sentido tem um Estudo como o Estudo da Concorrência do Sector Portuário da Autoridade da Concorrência, estabelecer as recomendações que estabelece e formular as propostas que formula às Administrações Portuárias em relação às orientações e cláusulas a observar nos contractos realizados com os respectivos operadores?

Indo além do seu âmbito não correrá o risco de gerar apenas ruído e confusão, conduzindo a que logo seja esquecido, tão rápido quanto possível, perdendo-se para sempre no limbo do mesmo esquecimento igualmente as inegáveis virtualidades e potencialidades de reflexão que também possui?

Sim, porque também as tem e, entre outras, a de não menor importância, a de chamar a atenção para a necessidade de uma reactualização da Estratégia Nacional para o Sector Portuário, sobretudo num momento em que tanto está para acontecer ou acontece já na Europa, desde a eminência da publicação da Directiva das Concessões às novas disposições e mais exigente atitude da Comissão em relação aos portos europeus.

O que é um porto, para nós, sendo que, perguntar pelo que um porto é, é sempre perguntar pela sua finalidade?

Que finalidade ou finalidades atribuímos aos nossos portos no seu todo e a cada um deles em particular?

Que portos queremos e que queremos dos nossos portos, de todos e de cada um deles?

Vimo-los, devemos vê-los, sempre no seu todo ou cada um por si?

Como os articulamos como nó de uma mais vasta cadeia logística, nacional, ibérica, europeia e mundial?

Como articulamos e enquadramos uma Estratégia Nacional para o Sector Portuário numa Estratégia Nacional para o Mar?

Como incluir e englobar uma Estratégia Nacional para o Sector Portuário numa verdadeira Estratégia Nacional, lato sensu?

Questões, muitas questões a que talvez importe dar reactualizada resposta mas que, sem desprimor, não esperamos, evidentemente, que seja a Autoridade da Concorrência a fazê-lo.

Enfim, devemos saber evitar o ruído, devemos saber evitar a dispersão, devemos saber pensar, devemos saber realizar.

Tão só e apenas isso o que se exige _ e sem lábia, como diria o nosso Padre António Vieira.

 



2 comentários em “Perplexidade e Enigma da Concorrência”

  1. A fotografia que ilustra esta notícia foi utilizada indevidamente pois tem os direitos reservados, como se pode constatar no seu site original:
    http://www.panoramio.com/photo/103864785
    Solicito ou menção da origem da foto ou remoção da mesma desta notícia.

    Cumprimentos,
    Luis Cabrita

    1. Gonçalo Collaço diz:

      Caro Luís Cabrita,

      A fotografia que ilustra o artigo foi usada poruqe cedida por quem, admitimos, tinha o respectivo direito de o fazer.

      Sim, podemos retirá-la, se assim entender, sem mai; mas, uma vez publicada, parece-nos o mais correcto, se nada houver a obstar, deixarmos aqui o registo do respectivo autor.

      Com os melhores cumprimentos,

      O Jornal da Economia do Mar

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

«Foi Portugal que deu ao Mar a dimensão que tem hoje.»
António E. Cançado
«Num sentimento de febre de ser para além doutro Oceano»
Fernando Pessoa
Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto.
Vergílio Ferreira
Só a alma sabe falar com o mar
Fiama Hasse Pais Brandão
Há mar e mar, há ir e voltar ... e é exactamente no voltar que está o génio.
Paráfrase a Alexandre O’Neill