O resultado até agora conhecido da trigésima primeira conferência da NATO realizada em Bruxelas no passado dia catorze de junho, com o regresso sempre desejado - America is back ! – do Presidente dos Estados Unidos, Mr. Joe Biden, deixa realmente um certo vazio, como os observadores especializados não deixaram de notar e salientar, relativamente ao Atlântico Sul.

O Brasil é uma invenção vossa, europeus, …

Carlos Drummond de Andrade

O resultado até agora conhecido da trigésima primeira conferência da NATO realizada em Bruxelas no passado dia catorze de junho, com o regresso sempre desejado – America is back ! – do Presidente dos Estados Unidos, Mr. Joe Biden, deixa realmente um certo vazio, como os observadores especializados não deixaram de notar e salientar, relativamente ao Atlântico Sul.

A confirmar-se este estado de coisas, aliado à quase ausência de África do programa de relações internacionais do governo democrata,  oportunamente  divulgado nas vésperas da sua tomada de posse, pode indiciar uma preocupação predominante dos assuntos da China e da Rússia na agenda externa da administração americana, a par evidentemente, do sempre louvável interesse da recuperação ambiental, nomeadamente na luta contra as alterações climáticas.

Aquilo que é comummente conhecido como Atlântico Sul é um enorme volume de água que vai esbater-se em praias, penhascos e portos, de África e da América do Sul.

E se em África é legitimo falar-se numa opção continental ou marítima, que leva os seus países e governos a virarem-se mais para África ou mais para o Atlântico, o que em Angola foi nuclear no momento das grandes decisões que opôs os dois principais movimentos independentistas, na América do Sul esta quase bipolarização nunca se colocou, já que as duas conceções diplomáticas que emergiram no continente, a brasileira e a argentina, privilegiavam, a primeira o relacionamento com os Estados Unidos, e a segunda com a Europa.

Apenas agora, mais recentemente, com a enorme pujança asiática, é que o Pacífico começa a assumir um protagonismo crescente.   

A América do Sul é uma massa continental com cerca de dezoito milhões de quilómetros quadrados, regularizada por dois acidentes geográficos:  a Cordilheira dos Andes, que se estende no sentido Norte – Sul, com cerca de oito mil quilómetros de comprimento e uma altitude média de quatro mil metros, e a Bacia do Amazonas, uma gigantesca concentração de água doce com terra agarrada, com cerca de sete milhões de quilómetros quadrados, no sentido Oeste – Leste, e atravessada pelo Equador.

É claro, que se lhes seguem outras particularidades geográficas igualmente relevantes, como sejam desertos lunares, pântanos e pantanais, as maiores quedas de água do planeta, a Patagónia, o complexo do Rio da Prata/Paraná, o mar privativo do Caribe, a terra fertilíssima dos Pampas, e duas frentes oceânicas, com o Pacífico a Oeste e o Atlântico a Leste.

Dentro destes limites vivem cerca de quatrocentos e trinta e cinco  milhões de habitantes, distribuídos pelos descendentes das primitivas tribos índias, dos conquistadores ibéricos chegados no século XVI, dos escravos africanos ignobilmente forçados a fazerem a viagem, nos séculos seguintes e até ao final do seculo XIX, e das levas de imigrantes dos séculos XIX e XX, sobretudo italianos, árabes, alemães e japoneses, a juntar aos portugueses e espanhóis.

E existem dois mundos, o português e o espanhol, complementares e integrados, é certo, mas sem por isso deixarem igualmente de estar de costas voltadas, como aliás estão na Península Ibérica.

Numa forma que nunca deixará de me espantar e orgulhar, o mundo português é aproximadamente metade do total da América do Sul, seja em território seja em população.

Diluída aquela mistura de diferentes origens e procedências numa mole imensa a que se chama a população sul-americana, no seio desta ainda podemos naturalmente descortinar agrupamentos diferentes, com destaque para dois povos: o fleumático e circunspecto das terras altas, e o sanguíneo e exuberante das terras marítimas.

No Brasil, esta partição permite distinguir paulistas e mineiros, de cariocas e baianos.

A história da América do Sul, desafortunadamente tem sido palco de diversos conflitos, com estes uma vez mais a terem as suas raízes numa dualidade. Conflitos internos e externos.

Os primeiros, domésticos, resultam da oposição entre dois modelos de governação, herdados do período colonial, como seja o do centralismo administrativo em torno de uma metrópole, como Buenos Aires, Lima, La Paz, Santiago, Caracas, Montevideu ou Bogotá, ou o da descentralização federativa, com ampla autonomia das restantes divisões administrativas (geralmente as províncias) na decisão e gestão dos seus destinos.

Os dois campos adquiriram diversas denominações, como conservadores e liberais, blancos e colorados, ou chimangos e maragatos, e lutaram entre si em guerras que eram quase intermináveis, a cuja motivação se juntava frequentemente o elemento emocional, quando não mesmo, passional.

A guerra que levou o Coronel Aureliano Buendía, um veterano da Guerra dos Mil Dias, ao local do seu fuzilamento, no início eternamente memorável de Cem anos de solidão, é uma destas guerras, acicatada pelo imperialismo gringo.

Os segundos conflitos, externos, têm origem em disputas territoriais entre estados, baseados em desenhos indefinidos de fronteiras, herdados igualmente do período colonial e do processo das independências que se lhe seguiu. Peru versus Bolívia, Chile versus Argentina, Colômbia versus Venezuela, Paraguai versus Bolívia, todos versus todos, etc, etc.

Uma vez mais, o nosso labor politico americano, centralizado no processo não traumático da independência, possibilita que o Brasil se possa eximir a estas vicissitudes, e não ter nenhum problema de secessão, pese embora o discurso de autonomia que por vezes S.Paulo e o Rio Grande do Sul agitam, e ser hoje o único país da América do Sul sem qualquer contencioso de fronteira com os seus dez vizinhos – todo o continente à exceção do Equador e do Chile – ao longo dos seus quase dezasseis mil quilómetros de fronteiras terrestres.

Os problemas da América do Sul, são variados e complexos, numa mescla de ancestrais e atuais, e felizmente que o continente conta hoje com a democracia e a participação popular para a sua resolução.

Longe vão os tempos em que a situação era ao contrário, e os governos estavam na maioria sequestrados por ditaduras, como foi típico nos anos cinquenta e sessenta do século passado.

Nessa altura, a meio dos anos cinquenta, um poeta cubano a viver em Paris numa rua de exilados políticos de diferentes nacionalidades sul-americanas, ao ter conhecimento da derrota e fuga do ditador Fulgêncio Batista, chegou à varanda do seu quarto e deu vivas:

O homem caiu!

Foi o que bastou para que quase de imediato as varandas vizinhas se enchessem de gente, que sem saber ao certo de quem se tratava, acompanharam a comemoração com outros vivas não menos vibrantes.

Afinal todos eles tinham um homem para cair, e bem podia ter sido o seu.

Atualmente o continente oscila ciclicamente entre modelos de governação; socialista, prolongado por vezes até ao marxismo, e social-democrata, prolongado até ao liberalismo, onde se infiltram, infelizmente, casos de aventureirismo e desvario cesarista, ao estilo populista, se bem que estranhamente, legitimado em consultas eleitorais.

A América do Sul tem que primeiro decifrar o enigma que Mario Vargas Llosa coloca logo no primeiro parágrafo de Conversa n’A Catedral, que sendo formulado para o Peru, é igualmente válido para todo o continente, depois, conceber e implementar a solução para os problemas daqui decorrentes, e final e seguramente, fruir os resultados merecidos.

Pejada de recursos, entre os quais avulta a qualidade do seu povo, com a melhor literatura que se escreveu na segunda metade do século XX, a América do Sul, deverá apostar simultaneamente na sua unidade,  e na coesão interna, assente em estruturas de cooperação, como por exemplo o Mercosul, e no reforço dos cabos que a unem à Europa, etéreos como os culturais, ou tangíveis como o EllaLink, o cabo submarino de fibra ótica para comunicações de alta velocidade, há dias inaugurado, a ligar Sines a Fortaleza, ou seja a Europa à América do Sul.



Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

«Foi Portugal que deu ao Mar a dimensão que tem hoje.»
António E. Cançado
«Num sentimento de febre de ser para além doutro Oceano»
Fernando Pessoa
Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto.
Vergílio Ferreira
Só a alma sabe falar com o mar
Fiama Hasse Pais Brandão
Há mar e mar, há ir e voltar ... e é exactamente no voltar que está o génio.
Paráfrase a Alexandre O’Neill