O Presidente da República reeleito já tomou posse com um importante discurso em que afirmou ser o mesmo de há cinco anos quando, mesmo que de um modo algo abstruso, ainda falava da importância do Mar para Portugal, o que actualmente já não sucede _ salvo uma tão subtil quanto perigosa referência aos Oceanos. Nada que preocupe muito, todavia, o mais comum dos mortais e muito menos qualquer mais vulgar Português…

Um ano depois de estarmos a sofrer um dos mais devastadores períodos que as actuais gerações já tiveram de viver, com Portugal a cair e a caminhar consistentemente para se tornar num dos países mais pobres da Europa, e muito em particular da União Europeia, às vésperas de uma crise social, económica e financeira quase sem precedentes, submetidos à ideologia neopragmatisto-neoanimista mais idiota de todos os tempos, o Senhor Presidente da República, a tomar agora posse para início do seu segundo mandato, tudo quanto tem a dizer é confirmar  o prodígio de continuar, afinal, exactamente o mesmo de há cinco anos (perdoe-se o pleonasmo porque, neste particular, se afigura justificado), como se Portugal, o Mundo e a Vida inteira girassem eternamente à sua volta, qual Rocha, qual Pedro, qual omnipotente Motor-Imóvel de todo o Universo, suprema garantia de todo o nosso Presente e de todo o nosso Futuro.

Extraordinário!…

Deve ser mesmo a única pessoa em Portugal que, passados todos estes longos cinco anos, com todos, e apesar de todos, os mais graves dramas vividos entretanto, dos trágicos incêndios de 2017 às trapalhadas de Tancos, da muito intencional substituição da Procuradora da República a um crescente intervencionismo do Governo como talvez nem o Estado Novo ousasse possível, continua, muito singularmente, exactamente o mesmo.

Extraordinário, prodigioso, realmente.

Há cinco anos, no seu discurso de tomada de posse, o Presidente da República ainda lembrava o Mar, hoje nem isso. 

Compreende-se porquê.

Como temos vindo a defender, se para compreender realmente a decisiva importância do Mar para Portugal, importa de saber, antes de mais, pensar Portugal, não compreender a decisiva importância do Mar para Portugal não pode deixar de indiciar não se saber pensar Portugal, como, uma vez mais, se prova.

Ao contrário do que talvez fosse de esperar, o Presidente da República começou, desta vez, por evocar, muito intencional e inteligentemente o patriotismo porquanto, temendo ser o patriotismo, de algum modo, «apropriado» por Partidos como um Chega!, num movimento de antecipação, nada como lhe dar, impor, desde já, o conteúdo entendido adequado, ou politicamente correcto, a tal conceito.

Infelizmente, porém, para quem tem dificuldade de pensar Portugal, difícil será também saber pensar o patriotismo de um ponto de vista Português, assim logo manifestando não só não saber, afinal, o que o verdadeiro patriotismo Português seja ou verdadeiramente signifique como não perceber tampouco o verdadeiro problema e real drama em que o Chega! se perde também _ ou quanto, ironicamente, os une, de resto.

Por patriotismo entende-se, evidentemente, como o culto da Pátria, ponto sem divergência nem dúvida _ mas não já no que por Pátria se entende ou deve entender.

«Uma Pátria é muito mais do que o lugar em que nascemos», começa por afirmar o Presidente da República, o que se afigura tão evidente quanto realmente difícil de refutar.

Porém, logo prossegue, «Uma Pátria são acima de tudo as pessoas», o que, afigurando-se igualmente certo porquanto será difícil imaginar uma Pátria sem pessoas, talvez a formulação não seja, contudo, a mais correcta, ou seja, talvez tendo o Presidente da Repúblico lido Almada a par de Sophia de Mello Breyner e meditado no seu dito «Há Portugal, não há Portugueses» e, pensando também no grande Teixeira de Pascoaes, nem tudo se lhe figurasse tão linear e simples.

Para Pascoaes, a Pátria Portuguesa é, acima de tudo, «um ser espiritual», ou uma «Ideia», implicando assim ser Português uma arte, como a «Arte de Ser Português» _ podendo nós entender como arte a capacidade de tornar visível o invisível, tornar audível o inaudível, tornar sensível quanto além de todo o sensível, como tornar inteligível quanto pairando, acima de tudo, no mais puro e etéreo mundo das ideias, antes de descer à terra, visita, antes mais também, como diria ainda Pascoes, o Poeta.

Não são importantes as pessoas?

Evidentemente que sim e tanto mais quanto é pelas pessoas que a Pátria se realiza, tal como só no indivíduo o pensamento se torna real _ e, por isso mesmo, quem verdadeiramente fez e faz Portugal a Nação que é, a Pátria que é, não são senão as grandes figuras, todos os grandes e verdadeiros Portugueses, dos grandes Reis aos grandes Poetas, aos Santos, Heróis e Génios que ao longo da vida souberam «da lei da morte ir-se libertando», libertando consigo Portugal também.

Compreende-se, e não deixa mesmo de ser tocante, a exaltação, por certo sentida e o mais sincera possível, em relação a todos os desvalidos da vida, razão porque defendemos sempre igualmente ser uma pena perdermos quem poderia ser talvez o mais notável Provedor da Santa Casa da Misericórdia para ficarmos com um fraco Presidente que «faz fraca a forte gente», mas se é certo que Portugal precisa de todos os Portugueses, Pessoa não foi um Belmiro de Azevedo, como Camões esteve longe de ser um Américo Amorim, se Portugal é Portugal, mais o deve, sem desprimor, aos primeiros do que aos segundos, assim como se são necessários calceteiros, sapateiros e padeiros, Sampaio Bruno é Sampaio Bruno não porque tenha sido padeiro mas Sampaio Bruno.

Quando o Presidente da República começa por afirmar serem os desvalidos a «razão, acima de tudo, do compromisso solene assumido», por mais comovente que seja, de um ponto estritamente humano, o que é facto é que é também quanto conduz a que incorra em dois outros erros dramáticos, como seja imaginar que os Portugueses o elegeram para ser exactamente uma espécie de provedor de todos os desvalidos, assim como para ser Presidente de todos e cada um dos Portugueses em particular, como se os Portugueses não fossem Homens livres, autónomos e plenamente soberanos do seu destino, e não para pensar primordialmente Portugal e ser o efectivo Presidente da República que uma Nação sempre necessita de ter.

Assim, se há cinco anos o Presidente da República, no seu discurso de tomada de posse, ainda falava no Mar, mesmo apesar da abstrusa formulação encontrada para o afirmar, agora nem isso.

Nada que surpreenda muito, não apenas porque então já assim prevíamos, mas porque, como por tudo quanto acima defendido, a sua real dificuldade em pensar Portugal não podia deixar de conduzir senão à incompreensão da verdadeira importância do Mar para o futuro de Portugal.

Assim, se há cinco anos era o Mar referido por estar então na moda sempre exaltar a importância do Mar para Portugal, cinco anos passados, mantendo-se exacta e rigorosamente, mas sendo agora a moda demonizar o Chega!, demonize-se então, mais explícita ou tão só mais implicitamente, o Chega!, e esqueça-se o Mar

A ironia, porém, como acima igualmente referido, é não compreender, por um lado, o verdadeiro problema e real drama do Chega!, nem quanto, por outro, de facto, os une e aproxima.

O Chega!, como repetidamente tem defendido, afirmado e demonstrado André Ventura, assume uma atitude e actuação «pragmática» _ e assim, se a Esquerda faz demonstrações de rua, o Chega! também desce à rua, defendendo o inverso, mas seguindo equivalente prática.

Legítimo _ e até compreensível.

Todavia, o que o Chega! não compreende é que o pragmatismo, ou seja, o primado da acção sobre o pensamento, algo que vem já dos longínquos dias de alvor da modernidade e acabou teorizado por Marx como a famosa «Praxis», não deixar de conduzir senão, como sempre sucedeu e ainda hoje sucede, ao predomínio da moral sobre a ética, ou seja, ao predomínio do «colectivo» sobre a individualidade, o que vale por dizer também, à aceitação do Nórdica primado da vontade, tão contrário à nossa mais genuína tradição, ou seja, ao primado do intelecto sobre a acção _ tal como quem tenha sabido ler, por exemplo, D. Duarte bem o sabe.

Nada de novo.

Assim, não deixando de ser exactamente o primado da vontade sobre o intelecto quanto está na remota origem do Neopragmatismo que, vindo dos Estados Unidos, não sem uma muito importante ajuda Franco-Alemã, se tornou esmagadoramente dominante em todo o Ocidente a partir do último terço do Século XX, não deixa de marcar igualmente o lugar de encontro entre ambos _ mesmo que nenhum deles se aperceba assim acontecer.

Por certo, divide-os os desvalidos, cada um defendo os seus, tal como, eventualmente, alguns preceitos de ordem económica e até de ordem mais imediatamente política, como de organização do Estado ou dos limites, extensão e legitimidade de acção do governamental, mas, no essencial, o Neopragmatismo tudo ultrapassa _ como o Presidente da República, de resto, parece ter já percebido.

Já não fala o Presidente da República do Mar?

Tampouco o Chega! fala ou dá e confere a importância ao Mar que o Mar verdadeiramente tem para Portugal _ o mesmo Neopragmatismo e a mesma incapacidade de pensar Portugal os aproxima, de facto reconhecendo ambos que o Mar, afinal, de per se, não dá votos nem paga imediatamente contas.

Por isso mesmo, afirmando-se o Chega! tão anti-sistema, é hoje tão importante parte do sistema, como a parte que é necessário que sempre haja a diabolizar de modo a permitir que, por sequencial acto de exorcismo, tudo possa prosseguir na paz da colectiva consciência das santas e sempre muito democráticas almas.

Todavia, algo há bem mais grave _ e tão mais grave quanto também bem mais subtil.

Se o Presidente da República não fala já do Mar, não deixa de se referir, «en passant», como se costuma dizer, aos Oceanos, no que se afigura inócuo mas, não deixando de ser uma expressão muito ONU, por tudo quanto já sabemos, essa aparentemente muito inócua referência não deixa de ser, no entanto, muito particularmente significativa porque será exactamente em nome do Combate às Alterações Climáticas, onde os Oceanos assumem um papel de decisiva de crucial importância, que se dará o primeiro passo para se tentar instituir um Governo Mundial, um Governo Mundial dos Oceanos, tal como hoje o nosso Mar é já muito mais Mar Europeu e não nosso Mar, sob real e efectiva Jurisdição Nacional.

Ora, sobre tudo isto, que devia preocupar sobremaneira o Chega!, soubesse pensar Portugal e fosse realmente o que o afirma ser, nem uma palavra.

Que nada disso preocupa o Presidente da República, já sabíamos, assim como bem conhecidas são as suas muito altas inquietações no que respeita às causas antropogénicas das Alterações Climáticas.

Que nada disso preocupe o Chega!, quando é tudo que justifica sempre também tudo o mais, já surpreende e não deixa de ser preocupante: afinal, por mais afirmações anti-sistema que se oiçam, a defender realmente o Mar e os superiores interesses de Portugal, é que, em termos de Partidos, não se ouve ninguém _ nem o Chega!.

Ter conseguido o Presidente da República evitar, apesar de tudo, incensar a adorável figura da pequena Pastorinha Sueca das Aflições Climáticas, já foi simpático, mas reouvindo todo o discurso, tudo o mais, para além dos chavões típicos da época, da transição energética ao digital, o que se percebe é que, sobre Portugal, sobre pensar Portugal, o vazio foi, e é, realmente total.

Se no fim da vida Heidegger afirmava, «só um deus nos pode salvar», nós, de uma tradição menos pessimista, sempre esperamos a intercepção do Anjo de Portugal _ uma vez nós próprios já não podermos muito, senão mesmo nada.

Não são dias exaltantes.

Para o Presidente da República, Portugal _ como insiste _ é uma «Plataforma», «uma plataforma entre culturas, civilizações, Oceanos, Continentes…», nunca se entendendo bem quanto significar com tal expressão que sempre se nos escapa _ como já em tempos comentámos.

Conjecturamos que imagine que «Plataforma» seja algo muito moderno, muito na moda, algo a lembrar e a sugerir o mundo digital e muito «up to date», e pouco mais.

Mas que importa?

Não é o poder da sugestão, nestes tempos de retórica e neograpmatismo, quanto verdadeiramente conta _ tudo quanto verdadeiramente conta?…

Há, evidentemente, a igual possibilidade, igualmente verosímil, de ver já, não só Lisboa, mas Portugal inteiro transformado num enorme Centro Internacional de Congressos e numa espécie de gigantesco Club Med, para onde os viagem do Universo passam a viajar permanentemente para para pacatamente repousarem, congressarem e, numa inaudita frescura, procederem a um saudável encontro de culturas, continentes e civilizações…

Sim, dir-se-á não ser nada de particularmente exaltante mas há destinos piores, e num mundo dominado pela Economia, em que o primado é sempre dado à Economia, se for um bom negócio, talvez faça sentido, quem sabe, ainda que, por agora se assemelhe apenas a um sonho.

Mas talvez seja exactamente por isso que o reeleito Presidente terminou o seu discurso citando Sophia de Mello Breyner, lembrando o «poder dos sonhos», das «mãos cheias».

Mão cheias de quê, não o disse, e nós não sabemos também a que se referiria.

No entanto, sabemos _ e com toda a certeza sabemos _ é que, prosseguindo neste caminho, nesta ignorância da importância do Mar para Portugal, derradeiro recurso estratégico que nos resta, daqui a cinco anos talvez tenhamos, de facto, as «mãos cheias», seja simplesmente de água salgada ou seja lá do que for, mas, incapazes já, com toda a certeza, de pensar Portugal, de defendermos e afirmarmos verdadeira soberania sobre o Mar que é nosso, i.e., o Mar, hoje ainda sob jurisdição nacional (admitindo possuirmos então ainda algum pouco do nosso Mar), é continuarmos a definhar paulatinamente, até à dissolução final, de cabeça oca e cada vez mais vazia, embora, quem sabe, talvez felizes com os sempre tão generosos quanto cálidos «afetos» continuamente dispensados pelo Presidente da República, a ponto de nos deixarmos sempre iludir, maravilhados, com a crença de sermos sempre também, «os melhores do mundo» _ ou, numa expressão talvez então já devidamente actualizada, «a melhor plataforma de encontro de negócios do mundo», rodeada de tão singular quanto revigorante ambiente marítimo



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«Foi Portugal que deu ao Mar a dimensão que tem hoje.»
António E. Cançado
«Num sentimento de febre de ser para além doutro Oceano»
Fernando Pessoa
Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto.
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Só a alma sabe falar com o mar
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