O território que se estende na orla da cidade do Rio de Janeiro, entre os postos um, em Copacabana, e doze no Leblon, é um espaço mágico do Atlântico Sul.

É um passeio de cerca de oito quilómetros, que se pode fazer em cerca de meia hora, mas que aconselho que se faça em muito mais, para prolongar o prazer.

E o nosso passeio, contudo, começa no Rossio, em Lisboa, com os pés e os olhos bem assentes no chão, constituído pelo ondulado alternado de pedra branca (calcite) e negra (basalto), que sob o olhar sereníssimo de Pedro, a quem os brasileiros chamam primeiro, e nós, quarto, simboliza o encontro suave e harmonioso do rio Tejo com o mar Atlântico.

Um tanto mais longe, e tempos depois, quando em 1906, o grande presidente da câmara (o prefeito) do Rio, Pereira Passos, mandou construir o calçadão de Copacabana, o caderno de encargos da obra, era explícito em matéria de pavimentação.

Calçada portuguesa, igual à do Rossio.

Os postos distam uma certa distância uns dos outros, servem para apoio aos banhistas, e sobretudo para demarcar endereços, entre os extensos areias das três praias, pela insuficiência que consiste em dizer, Copacabana, Ipanema e Leblon.

Copacabana estende-se entre os postos um e seis, Ipanema entre os sete e dez, e Leblon, postos onze e doze.

Isto ou aquilo, aconteceu ou deixou de acontecer no posto tal e tal. E qualquer coisa que se procure localizar na orla, tem como referencial o posto. Fica justo no posto tal, ou entre este e aquele posto.

O serviço de apoio aos banhistas vai desde o simples duche cá fora, até ao banho completo em cabina privada, onde uma jovem pode entrar em biquíni, vinda das ondas, e sair de vestido de noiva, rumo ao altar da igreja mais próxima.

E os postos servem sobretudo para registar territórios, populações e até gerações.

Qualquer brasileiro, sobretudo carioca, que pretenda identificar-se, é preferível que diga logo qual era sua praia, em que posto e em que anos, do que estar a arranjar referenciais fictícios, de exígua fiabilidade e garantida complexidade.

A minha praia, por exemplo. Ipanema, posto nove.

Copacabana, antes um areal selvagem, desenvolveu-se na viragem do século XIX para o XX, fruto do aperfeiçoamento das redes de saneamento e de transportes, estas últimas associadas à abertura dos túneis, que colocaram as praias da zona sul do Rio de Janeiro acessíveis à restante cidade.

Outro enorme contributo português a Copacabana, foi a extraordinária obra de modelagem física e hidráulica, os projetos e respetivos cálculos, realizada pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) de Lisboa, por uma equipa de engenheiros portugueses, predominantemente hidráulicos, coordenada pelo Professor Manzanares Abecassis.

O LNEC, que já tinha feito uma obra notável no Rio de Janeiro, no Aterro do Flamengo, foi convidado em 1965, para levar a cabo um projeto que permitisse simultaneamente aumentar o areal da praia, e regularizar o efeito das suas marés, que em épocas de enchentes, espalhavam a água pelo bairro inteiro, chegando às ruas traseiras.

Em 1969 iniciaram-se as obras, e cerca de um ano depois estavam concluídas, oferecendo ao Rio de Janeiro e ao mundo, um dos seus recantos mais bonitos.

Mas para que isso acontecesse, o último toque de génio, foi dado por um brasileiro, o arquiteto paisagista Burle Marx, que fez rodar o ondulado da calçada, da posição primitiva de perpendicular à praia, para a atual, paralela à água.

Os pouco mais de quatro quilómetros de Copacabana, estendem-se entre o posto um, no Leme, da Ladeira Ary Barroso, e o posto seis, já perto do Forte, nas imediações do qual existe uma colónia de pescadores, remanescente de uma antiga e numerosa presença de poveiros que antigamente alimentava de peixe a população do Rio de Janeiro.

A facilitação do acesso a Copacabana através dos túneis, e da melhoria dos transportes públicos, trouxe para o território praia, um dos grandes produtos culturais brasileiros: o samba. Que aqui, em Copacabana, encontrou o ambiente propício para o samba-canção.

Na Bahia, tinha-se desenvolvido no seio da população negra, quase toda escrava, uma música com raízes africanas, maioritariamente originária do que é hoje a Nigéria, e que à época era o território dos haussas, yorubas e igbos, e também de Angola, música aquela que acompanhou a expressiva migração das populações nordestinas para o Rio de Janeiro, à procura do trabalho que os engenhos e a fazendas deixaram de necessitar com o fim da escravatura, na altura em que este mesmo trabalho passou de gratuito a pago.

No Rio, aquela música encontrou o seu território encantado entre as vielas da zona portuária, os morros, e os terreiros de candomblé, da cidade e dos subúrbios, servidos pelo comboio, e desta forma, nos primeiros anos do século XX nascia no Rio de Janeiro, o samba. Que talvez ficasse para sempre ali, entre botequins, escolas de samba, gafieiras e praças, se não fosse a extraordinária oportunidade de também rumar à praia.

O samba apareceu em Copacabana ainda a tempo, ou justamente a tempo, de formatado, figurar nas pautas dos músicos que integravam as grandes orquestras que abrilhantavam as noites dos casinos, e casas de divertimento noturno.

Tinha acontecido algo de semelhante com o jazz e com o tango. Transladaram as suas raízes com os passageiros transportados de navio de um lado para o outro dos mares, no porão, com os africanos escravizados, ou nas classes sub-ínfimas que transportavam a imigração europeia.

O jazz, que tinha nascido na transição do meio rural para os subúrbios citadinos, através de personalidades lendárias e/ou de pequenos grupos, tinha agarrado com unhas e dentes a oportunidade de incluir o reportório das grandes bandas e orquestras, como a de Duke Ellington, Tommy Dorsey e Benny Goodman, e pisarem os palcos majestáticos de Nova Iorque, Chicago e S. Francisco.

Dos três cassinos que o Rio dispunha, ao longo dos anos trinta e quarenta, dois, o do Copacabana Palace e o Casino Atlântico, tinham como endereço Copacabana, e o terceiro, provavelmente o mais bonito, o Casino da Urca, onde vinham pessoas de todo o planeta para verem Carmen Miranda, no bairro da Urca, quase encostado ao Pão de Açucar.

Com isto a noite de Copacabana passou a ser uma das mais glamorosas do mundo, onde príncipes, milionários e estrelas, prescindiam do passaporte, e as mulheres, pelo contrário podiam exibir o ano todo os seus decotes vertiginosos, sem o receio de apanharem uma pneumonia, como em Londres, Nova Iorque ou Paris.

Mas tudo isto ia chegar abruptamente ao fim, quando o presidente da república, Eurico Gaspar Dutra, em finais de Abril de 1946 decide acabar com o jogo no Brasil, firme nos seus princípios cristãos, a que não foram alheios os incentivos da esposa, que dava pelo incrível nome de Dona Santinha.

Com o fecho dos casinos, de um dia para o outro, ou melhor de uma noite para a outra, uma legião de músicos talentosos ficou no desemprego, e o samba, solto nas madrugadas.

A solução foi partir para o modelo exatamente oposto, ou seja, em vez de associar, dispersar os músicos, por pequenos grupos, e dividir os grandes palcos por estrados mínimos, como convinha aliás ao preço do metro quadrado que aquele bairro sempre apresentou.

Surgiam os célebres inferninhos de Copacabana, instalados em nano áreas, que permitiam conversar, namorar e ouvir música, tudo baixinho.

Ali, uma geração extraordinária de músicos, monstros sagrados como Dorival Caymmi, e novos talentos como Edu Lobo, levavam a noite a saltitar de bar em bar, de agrupamento em agrupamento, até ao raiar do dia.

Com a música intimista que faziam, era perfeitamente natural encontrar, como me contou alguém que ainda viveu aquela época, à porta de um destes barzinhos, um aviso gentil:

Por favor, não falar alto para não acordar o baterista

E logo pela manhã era outro dia, já pelas seis horas, que convidava a uma praiazinha, palco natural de um grupo de jovens músicos talentosíssimos, que misturados com alguns daqueles que tinham tocado a noite toda, iriam dar origem a outra música, outro tipo de samba, também intimista e charmoso, mas agora não noturno mas luminoso, não lunar mas solar, e sobretudo claro. A música mais bonita do mundo.

A bossa nova.

Mas a bossa nova, como toda a gente sabe, é a música de Ipanema.

E Ipanema é o nosso próximo território, na caminhada ao longo deste litoral do Atlântico Sul. E logo pela Avenida Vieira Souto, o metro quadrado mais caro a sul do Equador.

Ipanema é porventura o pedaço mais cosmopolita do Brasil, logo depois, naturalmente, do bairro das embaixadas em Brasília.

Esta característica advém da grande quantidade de estrangeiros que escolheram aquele lugar para viver, perto do conforto e sofisticação que oferece, sobretudo a quem pertencer à classe média, e de preferência para cima.

Apesar da frase cunhada ali mesmo, intelectual não vai à praia, lê, foi nos areais de Ipanema que, para além da Bossa Nova, nasceu o Cinema Novo, e uma escola de psicanálise, tão legítima quanto a da Viena, dos anos vinte do século vinte.

Num corredor de areia, entalada entre dois postos, e inconfundível para os outros frequentadores da praia, pacientes e médicos, trocavam entre si perguntas e respostas, utilizando não o clássico divã, mas a muito mais prática toalha.

Data daquela época, anos sessenta e setenta, o tempo de O Pasquim, jornal oficial de Ipanema, mas que era lido letrinha a letrinha por todo o Brasil, dos igarapés profundos do Amazonas às esquinas de Belo Horizonte, e o que sobrava, lido avidamente na Europa, mesmo com muitos dias de atraso. Era o resultado de um grupo de intelectuais brilhantes, dali mesmo, daquelas pracetas e praias, e sobretudo bares.

Nasceu também ali, e por aquela altura, a Banda de Ipanema, um micro carnaval, doméstico, sofisticado, que sai apenas no antepenúltimo sábado, sábado e terça feira de carnaval, percorrendo o bairro, com início e fim na Praça General Osório, pertinho da Rua Canning, onde já morei, e que felizmente acabou por incentivar outras bandas, de outros bairros cariocas.

Se Copacabana é o território do futebol, o de Ipanema é o do vólei, e apesar dos dois desportos se jogarem em ambas as praias. Dos campos de Copacabana, saiu o Júnior, o melhor lateral esquerdo dos anos oitenta, e campeão do mundo de futebol em 1981 pelo Flamengo, e das redes de Ipanema, Isabel e Tande, várias vezes campeões do mundo e olímpicos.

Joga-se até à vitória definitiva, do derradeiro golo ou ponto. No futebol, até a linha lateral subir e descer com a maré, e no voleibol, até a bola se confundir com a Lua.

Já o esplendor cultural de Ipanema é dado pelas suas livrarias. Pelo menos de três, que coloco entre as mais charmosas que conheço.

Numa delas, na proximidade do posto dez, a menos de trezentos metros da rebentação das ondas, por mais do que uma vez tive que esperar um bocadinho ao sol para que o meu fato de banho secasse, para entrar e não estragar os cómodos sofás de couro que convidam ao conforto da leitura.

Paralelamente à praia estendem-se ruas que vão cortar outras ruas, através de esquinas que promovem uma prosa prazerosa. Em algumas das ruas, quando a sua inclinação suave permite, é possível ver a água nos dois extremos; a da Lagoa Rodrigo de Freitas, e a do oceano. O azul indiscritível, abobadado do verde que subsiste da Mata Atlântica, nos jacarandás, jambos, paineiras, bromélias, samambaias, jabuticabeiras, juquiris e pés de ipê, com que os cariocas preenchem as suas ruas.

Por entre elas, durante muito tempo foi possível ver a flanar pelo bairro, num caminhar redondo que incluía o Jardim Botânico, onde morava, a Lagoa, Gávea, Leblon e Ipanema, o maestro António Carlos Jobim, esse mesmo, Tom Jobim, quase sempre debaixo de um panamá e a fumar um Romeu & Julieta número dois, para prazer de todos, e respeito de alguns. Ah, seu Tom, esteve aqui agorinha mesmo…

O toque de proximidade entre o Leblon e Ipanema, é dado pela partilha do empedrado dos seus calçadões. Deixou de ser o ondulado, mas a geometria da alternância de quadrados e bolas, ora negros ora brancos.

A roupa certa para todo este território, é apenas pouca.

Se Pero Vaz de Caminha regressasse de repente ao areal de Ipanema, ia encontrar pouca diferença quanto ao que tinha visto em 1500 em Porto Seguro, na Bahia, e descrito na sua famosa carta para o rei. Talvez menos pinturas nos corpos, e ausência de penugem de aves nas cabeças.

E quanto ao calçado, absolutamente são sandálias havaianas.

É o mais acertado para o estar e não estar na praia.

As sandálias havaianas são aceites nas livrarias, dentro da Igreja de Nossa Senhora de Ipanema, e claro, no areal.

E servem para atravessar as ruas calmas do interior dos bairros, e com um pouco de treino, até a Ataulfo de Paiva, a Visconde de Pirajá, e a Barata Ribeiro.

Mas não dão para o centro. Um amigo meu tentou atravessar as oito faixas da Avenida Getúlio Vargas de havaianas, e chegou ao outro lado apenas com uma. E na mão.

Como não bastasse o banho de mar, outra das instituições locais é o duche.

O duche está para o carioca, como o yoga para os orientais e a sesta para os espanhóis.

Julgo que o duche a cair abundante do chuveiro, logo de manhã, a meio do dia, e ao princípio da noite, desperta nos cariocas a ancestralidade telúrica das cachoeiras e quedas de água, que inundavam a terra, como se pode ver em alguns motivos da pintura da escola nativista, ou em certos recantos da Floresta da Tijuca.

Debaixo do duche, o carioca medita, toma banho, e faz a barba. E até pode muito bem, estar de havaianas nos pés.

Depois de Ipanema vem o Leblon, e o nosso passeio está prestes a terminar. Ipanema e Leblon formam um território único, que apenas um exímio habitante local consegue individualizar, bem ao contrário de Copacabana e Ipanema.

A mesmíssima população circula de um lado para o outro dos dois territórios, o de Ipanema com cerca de dois quilómetros e meio, e o Leblon com quilómetro e meio, separados por um jardim que dá pelo nome encantado de Jardim de Alá.

Talvez seja mais fácil identificar cada um deles pelas ondas do mar, na praia, ou pelos confortáveis bancos das avenidas interiores, ou ainda, lá está, pelos postos. E no posto doze, este passeio acaba mesmo.

Também pode ser feito por ónibus, e de quase todo o Rio de Janeiro partem e chegam carreiras, muitas delas circulares, levando e trazendo gente em continuum de toda a cidade.

E certa vez, alguém próximo de mim tentava explicar como é que funcionava aquela circularidade.

Ou melhor, alguém queria saber como é que se sabia se o ónibus estava a ir ou voltar de Ipanema.

A explicação, sem sequer precisar de apelar à própria circularidade da Terra, foi definitiva.

Olhas para os pés das pessoas. Se tiverem areia, está a voltar.



Um comentário em “O Atlântico Sul, do posto um ao posto doze”

  1. Filipa Maia diz:

    Excelente crónica.
    Vivi 17 anos no Rio, onde nasceram os meus filhos.
    As suas linhas fizeram-me voltar no tempo e quase sentir o cheiro de mar do Posto 9 de Ipanema.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

«Foi Portugal que deu ao Mar a dimensão que tem hoje.»
António E. Cançado
«Num sentimento de febre de ser para além doutro Oceano»
Fernando Pessoa
Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto.
Vergílio Ferreira
Só a alma sabe falar com o mar
Fiama Hasse Pais Brandão
Há mar e mar, há ir e voltar ... e é exactamente no voltar que está o génio.
Paráfrase a Alexandre O’Neill