Durante algum tempo, em criança, o meu contacto com o Brasil resumia-se às caixas de charutos que o meu avô recebia na sua casa de Sintra, e que fumava um a um, prazeirosamente, ao final de cada refeição, acompanhado de café de S.Paulo, igualmente oloroso.

As caixas eram pequenas maravilhas de madeira, onde estava gravada a legenda, Suerdieck, Bahia, Brasil, e que quando ficavam vazias eram-me oferecidas pela minha avó, com a promessa de que eram para guardar os santinhos distribuídos na catequese, mas que eu enchia de cromos de jogadores de futebol.

Mais tarde, já em Luanda, mergulhei no Brasil que lia nas reportagens das revistas Cruzeiro e Manchete, que chegavam com um grande atraso, mas sempre a tempo de mostrar um mundo em português, completamente diferente de tudo que eu conhecia, ou imaginava.

Até que em plena juventude, o meu pai me ofereceu um exemplar de Casa Grande & Senzala, e eu percebi que as coisas deviam ter começado por ali.

Ainda hoje, quem quiser tentar perceber o que é o Brasil, deve saber de antemão que o seu esforço está votado ao fracasso, mas que este será maior, se não se lerem três livros, contemporâneos dos anos trinta e quarenta do século passado.

Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (o pai do Chico) e Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior.

A estes, podemos juntar pelo menos outros três mil, que por razões de falta de espaço, vou reduzir a três: Memórias de um estadista do império, de Joaquim Nabuco, Os sertões, de Euclides da Cunha, e Chega de saudade de Ruy Castro.

Portanto Casa Grande & Senzala figura em qualquer bibliografia que um brasilianista constitua, e é assim desde 1933, altura da sua primeira edição, porque apesar das extraordinárias mudanças ocorridas no Brasil desde essa altura, o livro trata sobre a formação do país. E foi o primeiro a fazê-lo.

E no caso que agora nos interessa, através da enorme importância e influência que os portugueses, fruto da sua aventura ultramarina tiveram, fazendo desaguar no Brasil, o melhor que havia nos outros territórios de Africa, tanto oriental como ocidental, e na Índia, desde que vicejasse nos trópicos.

Como o nome indica, quando se trata de falar sobre a senzala, descreve a brutalidade da escravatura, a violência e a sordidez, da trasladação forçada de povos inteiros de África para os engenhos de açucar do Brasil, mas mostra igualmente a importância que estas pessoas assumiram na formação do país, e o orgulho na miscigenação, como contributo definitivo do Brasil, e dos portugueses, à Humanidade.

Com o ar mais britânico de quantos ingleses encontrássemos a ler o Times e a beber uísque nos clubes de Pall Mall, olhos claros, protestante, com um inglês irrepreensível, adquirido por passagens em universidades norte-americanas e inglesas, e por longo contacto com o padrão de cultura dos missionários protestantes, Gilberto, oriundo da aristocracia mais antiga da terra, a dos Albuquerques, Cavalcantis, Melos, Wanderleis, Cabrais, dos Senhores de Engenho pernambucanos, vem desde a altura da saída do livro, a ser acusado pelos seus pares, de não satisfeito em ter revelado as origens mestiças do povo brasileiro, ainda a ter glorificado.

Também desde essa altura, que influenciado pelas muitas obras que leu e estudou para redigir o seu trabalho matricial, o escritor passou a ser um estudioso daquilo que ele chamou a adaptabilidade do luso aos trópicos, e que posteriormente sistematizado iria dar o luso-tropicalismo.

Com a grande maioria do seu império ultramarino encravado entre os dois trópicos, os portugueses desenvolveram formas de vida próprias nestas regiões, e que depois transacionaram entre os seus territórios, algumas delas chegando ao continente europeu, como por exemplo a de tomar banho frequentemente.

E que sobretudo, fizeram direcionar para o Brasil, na minha opinião, o grande desígnio português, depois da independência a meio do século XII, e do rumo do mar, em quinhentos.

O apelo às vantagens do usufruto de características próprias e positivas do luso tropicalismo, para os povos que dele beneficiavam, não passou despercebido ao Professor Salazar, quando constatou que o seu império ultramarino estava a ser colocado em causa internacionalmente, a ser criticado na ONU, e a ser combatido no terreno.

Nesse momento, trinta anos depois da publicação do livro, sem que até àquela altura nada de especial despertasse nele a atenção da intelligentsia portuguesa, o governo apoderou-se do luso-tropicalismo para tentar justificar a razoabilidade da sua presença para lá da Europa.

Gilberto Freyre, foi sensível à sedução exercida por Salazar, e o seu relacionamento teria ultrapassado mesmo o campo do respeito mútuo, para adentrar o da amizade.

O escritor era presença assídua nos cursos das grandes universidades mundiais, e nas assembleias internacionais de discussão do poder, onde era ouvido e respeitado, onde nunca deixava de pugnar belas benesses que os portugueses tinham introduzido nos trópicos, com o afã das viagens oceânicas, nem de tentar explicar algumas particularidades onde assentava a nossa presença ultramarina.

O Professor Adriano Moreira, felizmente entre nós, foi outro que conviveu com o grande escritor, retratando essa convivência em páginas interessantíssimas.

Contudo, na obra de Gilberto Freyre, o que se encontra são análises sociológicas, com uma incidência particular na cultura tropical, expostas numa linguagem encantatória, isenta de considerações políticas, ou muito menos ideológicas.

Neste campo, é curioso verificar como a crítica ao livro evoluiu desde o seu surgimento até à actualidade, da direita para a esquerda.

A meio dos anos trinta, quando o livro é publicado, o patriciado brasileiro, dos senhores de engenho nordestinos, os barões dos sobrados e das xácaras do Rio Janeiro, os paulistas quatrocentões, e os estancieiros gaúchos do Rio Grande do Sul, não gostaram de ler nas páginas do livro, aquilo que eles já sabiam, meramente de saber olhar à sua volta; que o Brasil era um país mestiço.

A partir de meados dos anos sessenta, com o despertar de uma consciencialização africana, expressa em África pelos movimentos independentistas, e no Brasil, pela valorização das raízes, as tendências pan africanas viram na obra uma glorificação colonizadora tropical dos portugueses.

Ou seja, separados por trinta anos, os conservadores não perdoaram em Casa Grande & Senzala, a parte da senzala, e trinta anos depois, os progressistas, a da casa grande.

Ora, um dos méritos da obra, e do seu autor, é precisamente mostrar como aqueles dois mundos, o da senzala, africano, e o da casa grande, europeu, são mais do que complementares, indissociáveis, no surgimento de um território comum aos dois, que é o maravilhoso Brasil.

Finalmente, fica por registar a enorme simpatia que Gilberto Freyre sempre teve pelos portugueses, e pela nossa obra ultramarina, com especial incidência nos trópicos.

Pedro Nava, muito provavelmente o maior memorialista brasileiro, autor de outra obra indispensável à tentativa de entendimento do Brasil, como sejam os vário volumes das suas memórias, referiu isto mesmo:

Gilberto Freyre avalia a capacidade mental de qualquer brasileiro pelo sentimento que esse nutre com relação a Portugal.



Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

«Foi Portugal que deu ao Mar a dimensão que tem hoje.»
António E. Cançado
«Num sentimento de febre de ser para além doutro Oceano»
Fernando Pessoa
Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto.
Vergílio Ferreira
Só a alma sabe falar com o mar
Fiama Hasse Pais Brandão
Há mar e mar, há ir e voltar ... e é exactamente no voltar que está o génio.
Paráfrase a Alexandre O’Neill