Cento e cinquenta anos depois de em 1884 ter perdido o acesso ao Oceano Pacífico, a Bolívia tentou conquistar o acesso ao Atlântico, através do Chaco, utilizando para isso a Guerra do Chaco, que entre 1932 e 1935 opôs aquele país ao Paraguai.

E este facto é tão mais estranho, quanto o Paraguai também não tinha, como não tem atualmente, acesso ao mar.

O Chaco, é um território com cerca de 1 300 000 quilómetros quadrados, delimitado por uma malha capilar cúmplice de rios e de afluentes, onde estes vão trocando de papéis, encontrando-se todos para o grande festim da procriação e morte, em bacias hidrográficas, a céu aberto ou labirínticas.

Aquela área reparte-se por paisagens magníficas, que vão desde a pampa, a floresta, o quase deserto e o pantanal, e respeitam a quatro países: Brasil, Argentina, Paraguai e Bolívia.

E naquela altura serviam para pouco mais do que alimentar as divergências territoriais daqueles três últimos países, oriundas de um colonialismo rancoroso e de independências fratricidas.

A Bolívia, aproveitou a passagem do século XIX ao XX, para preparar o seu exército para qualquer coisa que lhe permitisse reassumir o protagonismo que tinha perdido à beira do Pacífico, gastando nas forças armadas o dinheiro que obtinha da produção mineira.

A organização foi entregue ao oficial prussiano Hans Kundt, que em 1908 chegou a La Paz, acompanhado de outros camaradas de armas.

Em 1914, Kundt naturalmente regressou à Europa para juntar-se ao exército do Kaiser, tendo lutado com bravura e distinção na frente oriental, e alcançado a patente de general, com a qual regressou à Bolívia no final do conflito.

Marechal do exército boliviano, ministro da guerra, e mais importante, cidadão boliviano, Hans Kundt recomeçou a preparar o exército, e sobretudo um cenário de guerra assente num pretexto, para entrar em cena.

E este surgiu quando no início dos anos trinta, foi descoberto petróleo na base dos Andes, no Chaco Boreal, que a Bolívia e o Paraguai consideravam ambos em território pátrio.

O Paraguai era naquela altura, apenas uma parte do grande Paraguai que na guerra que tragicamente transportou o seu nome para a posteridade, entre 1865 e 1870, tinha sido derrotado pela Tríplice Aliança constituída entre o Brasil, a Argentina e o Uruguai – talvez a única altura em que estes três países estiveram simultaneamente todos de acordo – , em mais uma guerra sul americana, mais uma, fruto de uma deficiente distribuição territorial, e esta particularmente para arrancar da nação guarani o acesso ao mar.

As grandes empresas petrolíferas que naquela altura se digladiavam no oriente, próximo, médio e longínquo, não perderam a oportunidade de atirar um pouco da sua produção para a fogueira que começava a lavrar na América, e mais particularmente no Chaco.

E mesmo que as reservas petrolíferas acabassem por se revelar pouco promissoras, estava encontrado o motivo procurado pelo exército dos dois países.

Na Bolívia, sensivelmente por esta altura também se encontrava o Capitão Ernst Röhm, um condecorado do exército imperial alemão, que como tantos outros ao ser desmobilizado pelo Tratado de Versalhes, não encontrou nada para fazer numa Alemanha deixada de rastos, e que entre 1928 e 1930, aceitou rumar aos Andes, para colaborar na restruturação do exército boliviano.

Deixaria La Paz por convite pessoal de Adolf Hitler, para ingressar nas ruas de Berlim, Hamburgo, Munique, e seguir uma carreira de rufia notório
à frente das SA, que ele próprio fundou, como braço armado do partido nacional socialista, até à altura em que na noite de um de julho de 1934, a famigerada noite dos facas longas, foi assassinado por ordem expressa de Hitler, que aproveitou para extinguir as SA, substituindo-as e às suas camisas castanhas, em definitivo, pelas ainda mais sinistras camisas negras das SS.

Em comparação com isto, até a guerra na selva sul americana parecia bucólica.

Nas forças armadas paraguaias, e mesmo na condução da sua vida económica, também se fazia notar uma forte presença teutónica, que vem até aos nossos dias.

A superioridade da marinha paraguaia, e a operar mais próxima das suas linhas de abastecimento, acabou por ser decisiva para que o resultado da guerra se inclinasse para o seu lado, e em doze de junho de 1935, em Ingavi dava-se a derradeira batalha.

Longe, bastante longe dali, nos squares de Bruxelas, mas logo em dezembro daquele ano, Hergé começava a publicar no número de cinco de dezembro do semanário Le Petit Vingtième, as aventuras de Tintin na estória L’Oreille cassée, estendendo-a até ao número de vinte e cinco de fevereiro de 1937, e que passou a álbum ainda nesse mesmo ano, o qual em Portugal por uma razão qualquer se chamou durante muito tempo, O Ídolo roubado, até se fixar no seu correto equivalente francês, A orelha quebrada.

A banda desenhada europeia e a norte-americana, são quase contemporâneas, surgem por volta dos anos vinte do século vinte, mas com origens substancialmente diferentes. A norte americana, nasce do mundo dos comics, do bas-fond das ruas de Nova Iorque, Chicago ou S.Francisco, e é constituída por homens musculados e mulheres curvilíneas, cheias de altos e baixos, e ainda por cima alguns dotados de poderes sobrenaturais, como voar ou aparecer e desaparecer, e que deixam as vinhetas onde são desenhadas a escorrer sangue e juncadas de cadáveres.

A banda desenhada europeia nasce na tranquilidade dos templos católicos, no remanso das sacristias, onde é prestado serviço social, e da necessidade de ocupar bandos de crianças, oriundos de famílias desfeitas na primeira guerra mundial, e que é preciso desviar dos perigos da segunda, com qualquer coisa que complementasse o escotismo militante.

É composta de gente normalíssima, que qualquer um pode encontrar num jardim de Bruges, num pub de Londres, ou nos areais do deserto norte-africano.

É assim que o jornal católico Le Vingtième Siècle decide entregar a um jovem chamado Georges Remi, a criação de estórias que apareceriam nas páginas do jornalzinho semanário, e este, com a sua Caran d’Ache desenhou a linha clara de duas personagens míticas do século vinte. Hergé, ele próprio, e Tintin.

Nas páginas de banda desenhada, Tintin vive a guerra do Chapo (de chapéu, proteção, embuste) e onde ao lado das figuras folclóricas dos generais Alcazar e Tapioca, também não deixa de retratar o cinismo e poder maléfico das companhias petrolíferas e dos vendedores de armamento, com destaque para Basil Zaharoff, o célebre comerciante de armas daquela altura, que com o mesmíssimo aspeto e indumentária, passa a ser Basil Bazaroff.

De regresso ao Chaco, na paz formal assinada em Buenos Aires em julho de 1938, a Bolívia perdia cerca de 75% do território em disputa, mas ganhava o acesso ao rio Paraguai através de Porto Suárez, e daqui, e do intrincado emaranhado fluvial do continente, o aceso ao rio Paraná, e finalmente daqui ao Atlântico, e aos portos de Buenos Aires, Montevidéu e Santos.

Felizmente na atualidade não deixam de existir iniciativas diplomáticas, envolvendo os países interessados, alguns, autênticas potências locais, e que muito melhor do que as bravatas caudilhescas, podem a breve prazo levar a justiça aos territórios afetados.

Ou ainda melhor. O mar.



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