Afundar navios ou musealizar naufrágios, eis uma boa interrogação para uma longa e muito meditada reflexão

Não constitui segredo algum que o mar de Portugal continental não é dos mais apetecíveis para a prática do mergulho amador. Quase sempre glaucas e agitadas, as nossas águas frias não conseguirão nunca competir com as do Mar Vermelho, para falar apenas naquele que, para a Europa, é o maior e mais competitivo mercado de mergulho.

Assim sendo, às empresas de animação marítimo-turística resta, ou concentrar-se em zonas como Sesimbra e Peniche, ou criar novos sítios de interesse e de atracção. Exemplo disto mesmo é a implementação, pela Subnauta, do parque temático Ocean Revival, através do afundamento controlado de 4 obsoletos navios da Marinha Portuguesa. Emulando o que se tem vindo a fazer em várias paragens – casos como o USS Oriskany, na Florida, ou o Madeirense, em Porto Santo, são paradigmáticos – infelizmente a criação destes recifes artificiais não se faz sem polémica nem, principalmente, sem se evitar o custo associado à neutralização ambiental dos navios.

Há, contudo, outra aproximação a este problema – a que utiliza os naufrágios dos navios que por cá se perderam e que já cá existem. Com efeito, charneira entre dois mundos marítimos, o Mediterrânico e o Norte-atlântico, a costa portuguesa foi durante milénios sulcada por toda a sorte e espécie de embarcações. Ao seu largo travaram-se batalhas, defrontaram-se tempestades e perderam-se – por incúria, cobiça, ignorância ou simples acaso do destino – homens, navios e cargas. Não é de admirar, portanto, que com uma extensão de costa de aproximadamente 900 kms e uma rede fluvial densa, Portugal continental possua uma grande densidade de vestígios de Património Cultural Subaquático (PCS).

O Lidador – um navio brasileiro que naufragou em 1878 na baía de Angra do Heroísmo, ilha Terceira, Açores – é um bom exemplo deste tipo de património. Durante 120 anos, os seus destroços repousaram a cerca de 7 metros de profundidade, a sua identidade e os seus próprios restos físicos dissolvendo-se lenta, mas paulatinamente, no fundo oceano Atlântico. Alvo de uma intervenção arqueológica preliminar, o sítio foi proposto em 1998 como primeiro candidato à constituição de uma Reserva Arqueológica Subaquática (RAS), proposta essa que viria a ser concretizada pelo Governo Regional dos Açores com a criação, em 2005, do Parque Arqueológico da Baía de Angra do Heroísmo.

Actualmente, a rede de RAS nos Açores conta já com 3 naufrágios, estando para breve a adição de outros dois. Todos são naufrágios de relativa importância arqueológica, facilmente acessíveis ao mergulho amador e com um percurso histórico perfeitamente identificado. Com efeito, para ser elegível, um sítio arqueológico subaquático necessita de reunir as seguintes condições: apresentar comparativamente um valor arqueológico relativo, conforme avaliação feita in situ; ser pouco sensível ao impacto negativo que o acréscimo de visitas ao local não deixará de acarretar; e apresentar boas condições geofísicas que permitam efectuar mergulhos em segurança.

Encerrando em si um peso específico – o do drama trágico-marítimo, quantas vezes o da evocação de episódios-chave da Humanidade – o naufrágio histórico não pode ser comparado ao recife artificial. Ele é genuíno. Assim, do ponto de vista turístico-cultural, a criação de RAS permite a recuperação, divulgação e promoção dos valores patrimoniais submersos, integrando-os em circuitos turísticos.

Concluindo: por um custo irrisório (elaboração de folhetos de divulgação, instalação de um sistema de amarração, aposição de placas explicativas em bronze, monitorização e limpeza anual) é possível não só cumprir com as mais variadas obrigações a que Portugal está sujeito em termos de gestão do Património Cultural como também diversificar a oferta museológica e turística nacional. E isto a custo (quase) zero.

 



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