É impossível um símil para o mar, é um singular. Tampouco cabe com suas caraterísticas no foro das referências do humano, mas se procuramos intuir uma definição, o observador é compelido a declarar após uma série de aproximações: não sei o que é o mar.
São muitas e várias as metáforas poéticas que procuram aproximarmo-nos de sua compreensão. O mar poderia ser
(…) uma lágrima caída dos meus olhos (…)
ou
(…) brancos dentes, sejam o mar (…)
Pode mostrar-se como um ser maternal e acariciante quando
(…) minha mãe me chama
quando uma onda e outra onda e outra
desfaz o seu corpo contra o meu corpo.
(…) o mar é carícia,
luz molhada onde desperta
meu coração recente.(…)
ou apresenta-se num ser fantástico, fantasmagórico,
(…) uma figura branca
cintilando entre os rochedos.(…)
e até surge-nos num palpitante horror, num
(…) um adolescente morto
de lábios abertos aos lábios da espuma.
É sangue,
sangue onde a luz sobre as areias.(…)
mas não é possível encontrar um símil do mar:
(…) não sei o que é o mar.
Eugénio de Andrade, «Mar, Mar e Mar» (excertos)
Porto, Assírio & Alvim, 2012 (1951)
O mar, quando o consideramos próximo a caraterísticas humanas, é propício a variadíssimas invocações, a idade de ouro:
Tudo era claro:
céu, lábios, areias,
O mar estava perto,
fremente de espumas,
Corpos ou ondas:
iam, viham, iam,
dóceis, leves – só
ritmo e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto.
Puríssimo. Doirado.
Eugénio de Andrade in Mar de Setembro,
Porto, Assírio & Alvim, 2013 (1961)
e
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
Sophia Mello Breyner Andresen «Liberdade» in Mar Novo,
Porto, Assírio & Alvim, 2013(1958)
O seu interesse estético é aberto a uma diversidade inabrangível, é também toiro, cavalo, mulher e bailarina:
Como toiro arremete
Mas sacode a crina
Como cavalgada
Seu próprio cavalo
Como cavaleiro
Força e chicoteia
Porém é mulher
Deitada na areia
Ou é bailarina
Que sem pés passeia
Sophia, «A Vaga» in Livro Sexto,
Porto, Assírio & Alvim, 2014 (ed.1964/poema de 1962)
é um apaixonado, ébrio, na vasta praia, num bailado imenso, impetuoso,
Onde – ondas – mais belos cavalos
Do que estes ondas que vós sois?
Onde mais bela curva do pescoço
Onde mais bela crina sacudida
Ou impetuoso arfar no mar imenso
Onde tão ébrio amor em vasta praia?
Sophia de Mello Breyner Andresen, vide Rumor de Mar, (poema de 1989)
Por isto, não se configura humano, propõe sim uma existência que nos surpreende. Pode indicar um corpo alado e lunar:
Quando penso no mar
A linha do horizonte é um fio de asas
E o corpo das águas é luar; (…)
Vitorino Nemésio «Correspondência ao Mar» (excerto) in
O Bicho Harmonioso, Coimbra, Revista de Portugal, 1938
Naquilo que se liga ao próprio humano a estética marítima apresenta um ímpeto imanente e vital,
(…) Eu (…)
Vou na onda, de tempo carregada,
E desenrolo:
Sou movimento e terra delineada,
Impulso e sal de pólo a pólo.
Enquanto podemos tentar inseri-lo dentro de nossa medida humana, certo é que não atinamos proporção, o mar resiste e não cabe; É múltiplo sem que alcancemos ponderá-lo; Extremado na sua aparência, pode ser frio como uma evidência matemática ou quente como o sentimento que acompanha a lágrima:
Quando penso no mar, o mar regressa
A certa forma que só teve em mim –
Que onde ele acaba, o coração começa.
(…) E, de assim começar, é abstracto e imenso:
Frio como a evidência ponderada,
Quente como uma lágrima num lenço. (…)
Vitorino Nemésio «Correspondência ao Mar» (excerto) in
O Bicho Harmonioso, Coimbra, Revista de Portugal, 1938
Lágrimas ainda pela mar se evocaram, em Camões:
(…) Que mais te posso dar, Ninfa fermosa,
inda que o mar de aljôfar [pérolas/lágrimas] me cubrira
toda esta praia leda e graciosa?
Amansam ondas, quebra o vento a ira;
minha tormenta triste não sossega;
arde o peito em vão, em vão suspira. (…)
Luís Vaz de Camões, «Piscatória» (excerto) in Éclogas
Em Lopes Vieira:
Meu sangue é português,
minha pele é morena,
minha graça a Saudade,
meus olhos longos de escutar sem fim
o além, em mim…
Chora no ritmo do meu sangue, o Mar.
Lopes Vieira, «Chora no ritmo do meu sangue, o Mar» (excerto)
in Ilhas de Bruma,
Coimbra, Of. Francisco Amado, 1917
Em Pascoes há lágrimas divinas que, como numa teurgia se evidencia no sal, na neblina e na pedra:
(…) Sobe, do mar salgado, o canto das neblinas.
Nos olhos duma pedra, há lágrimas divinas;
Teixeira de Pascoaes in Para a Luz (excerto); Vida Etérea; Elegias;
Caro Luis, o poema vai para meu blogue. Sua expeiência no meu coração. Seu livro publicitarei. Abraço. Que bom saber que alguém vai cultivando o Mar…
Pedro, que maravilha abrir o Jornal da Economia do Mar segunda-feira e ler o mar na sua releitura dele através da poesia errante que flutua entre nós desde tão longe e de nobres autores. Meu deleite só aumenta no momento em que estou enviando para o “prelo” desta era digital meu “Poesia em Alto Mar & Nós / High Sea Poetry & Knots” (edição bilínge Português/Inglês), um depositório interior de quando velejava ao redor da Austrália num barquinho a velas que construí com as próprias mãos, sem experiência de construção e nem de velejar, sem sanidade também, pois o Mar da Tasmânia, Corais, Carpentaria, Arafura e Timor não é um lugar para este tipo de mergulho levando a bordo sua mulher com ainda menos experiência do ambiente de que nos debruçamos aqui, meu amigo. Aprendi que no mar se faz amigos antes mesmo de os conhecê-los pessoalmente, uma das virtudes do mar… Deixo modestamente um de meus depoimentos, confissões:
Era uma onda
Entre uma vaga e outra
Era uma onda
De meus cacos
De meus medos
De minha intimidade profunda
Quando a lua ficou nua
E sugou as vagas
Do meu eu por inteiro …lentamente, como sempre faz. Ferida.
Aí veio a noite, ventania e o frio
Quando o pano abriu e a peça se chamava Vida.
Agora não era uma onda
Eram olhos vendo os meus cacos
Eram mãos tocando em meus medos
Eram línguas lambendo minhas feridas… lentamente.
E doía.