Se é certo, na maioria das circunstâncias, não haver mais perfeita mentira que uma meia-verdade, talvez não haja também pior raciocínio que um meio-raciocínio conduzindo à pior das cegueiras como talvez seja apenas uma meia-visão.

«Há quase dez meses, ao tomar posse, recordei a nossa vocação de sempre, que é a de sermos mais do que dez milhões que vivem num rectângulo na ponta ocidental da Europa. Somos e temos de ser uma plataforma entre culturas, civilizações e continentes, espalhados pelo mundo, capazes de criar diálogo, fazer a paz, aproximar gentes».

Como alguns talvez reconheçam, estas são as frases de abertura do discurso de Ano Novo proferidas pelo Senhor Presidente da República, Domingo passado.

Nada de extraordinário, dir-se-á. Ouvimos, ou lemos, tais afirmações e tão habituados estamos já a tais selectos lugares de retórica que nem atendemos sequer, por um segundo que seja, ao seu possível e eventualmente profundo significado.

É certo. Num primeiro momento, ouvir, ou ler, definir a vocação de Portugal como sendo a de se constituir como uma plataforma, além do sorriso pelo inusitado da analogia, talvez tenda, simplesmente, a bloquear toda e qualquer mais profunda reflexão por tudo se afigurar mais não ser senão o que, antigamente, se designava por flatus vocis.

Mas se assim for, não se deixará de cair também num profundo erro. Não apenas porque devamos entender sempre como iluminantes as palavras de sua Excelência o Senhor Presidente da República mas porque, neste particular, o são realmente _ muito embora também, no caso, nem sua Excelência o Senhor Presidente da República, ao longo de todo o seu discurso, quedando-se pelo meio raciocínio, se afigure ter-se meio-apercebido sequer de quanto verdadeiramente o poderiam ser ou o são mesmo.

Senão vejamos.

Não suscita de imediato a expressão «plataforma» a imagem de cais, de construções de embarque e desembarque, seja de pessoas, mercadorias, ou o que for?

Quando pensamos nos dias de grandeza material de Portugal não ocorre de imediato à memória os dias em que Lisboa era o grande porto da Europa? Quando Lisboa se constituía, de facto, como uma «plataforma» de congregação de culturas, as mais distantes, de mercadorias, as mais exóticas, como as muito valiosas, por raras, especiarias, entre tudo o mais, tudo aí juntando e a partir daí tudo distribuindo para todo o mundo quanto o mundo mais queria, pedia e ansiava?…

Os dias em que Portugal tinha os nautas mais arrojados, mais corajosos, melhor preparados e mais sábios do mundo?…

Os dias em que Portugal tinha a mais evoluída construção naval, o  maior desenvolvimento de artilharia e a ciência e táctica militar naval mais avançada do mundo?…

Depois, sabemos o que sucedeu, tudo passou à História…

Qual a nacionalidade da maior empresa armadora do mundo?

Qual a maior nação armadora do mundo, se assim podemos dizer?

São essas nações necessariamente grandes nações, em termos de dimensão populacional, territorial, económica mesmo, numa avaliação pelo respectivo PIB, como hoje soe avaliar-se?

Ah!, olhássemos nós para o mar e não ficássemos sempre tão só pela estafada retórica, pelo meio-raciocínio, mais a mais quando é concomitante preocupação de sua Excelência  Senhor Presidente da República, como igualmente expresso no seu discurso, o fraca crescimento económico…

Lembra a expressão «plataforma», portos?…

Com certeza.

E não está associado o conceito de porto a logística, como elemento de uma cada vez mais vasta e complexa cadeia, talvez até mesmo de integração das mais distintas e diferentes plataformas ?…

E como estão os nossos portos?…

Benzinho…

Difícil, neste momento, pedir mais?…

Quais são os maiores portos da Península Ibérica? Os maiores da Região, se tivermos em conta Marrocos?…

Temos um problema de crescimento económico?…

Olhamos, com olhos de ver, por exemplo, para o quase vazio da Zona Industrial de Sines?…

Se temos um problema de crescimento económico, devemos regozijarmos particularmente com o aumento do salário mínimo, por simpático que tal possa parecer? Não é o problema crítico o problema do desemprego? E em situações de crise não tende um aumento do salário mínimo  a aumentar ainda mais esse mesmo desemprego, tendendo também, em última instância, a conduzir igualmente a um aumento do custo de vida e a que esses mesmos ganhos eventualmente se percam, prejudicando e penalizando mais exactamente aqueles que mais se pretende defender, ou seja, todos quantos com menos posses?

Não deveríamos, em vez de grande preocupação com salários mínimos,  estarmos era verdadeiramente preocupados em procurar atrair empresas e indústrias para desenvolver uma área de características logísticas quase únicas, exactamente, como a Zona Industrial de Sines?…

Temos políticas para a possível atracção de potenciais empresas, potenciais indústrias, como teve, e tem, por exemplo, uma Irlanda, ou fazemos quase exactamente o inverso?…

Se precisamos de crescimento económico, será preciso dizer mais?…

«Há quase dez meses, ao tomar posse, recordei a nossa vocação de sempre, que é a de sermos mais do que dez milhões que vivem num rectângulo na ponta ocidental da Europa. Somos e temos de ser uma plataforma entre culturas, civilizações e continentes, espalhados pelo mundo, capazes de criar diálogo, fazer a paz, aproximar gentes».

Muito bem. Muitíssimo bem. E depois? E depois: «Para isso, defendi mais e melhor educação [ ] »…

Sim, falar de educação quadra sempre bem, dá sempre um ar de grande generosidade, de grande solicitude, de grande preocupação com as futuras gerações que, nada tendo a fazer em Portugal, sempre podem ir lá para fora melhor preparadas, encontrando mais adequado emprego, melhor remuneração e, no fim, felizmente, sendo todos mais iguais, todos muito doutores, muito igualmente felizes.

Qual é o verdadeiro problema actual, falta de educação ou falta de crescimento económico, o que significa também consequente falta de suficiente emprego para todos?…

Se o verdadeiro problema for a falta de educação, sua Excelência o Senhor Presidente da República, enquanto Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, saberá e conhecerá, com certeza, o melhor caminho a seguir.

Se o verdadeiro problema é a falta de crescimento económico, falta de empregos, permita-se uma sugestão: olhe-se para o mar com olhos de ver e proceda-se a um raciocínio completo, relacionando o pensamento com o tempo e o tempo com o movimento. E conclua-se. E decida-se. E execute-se com determinação quanto houver a executar.

Tememos o constrangimento de passarmos por Oliveiras da Figueira?

Não temamos.

Não têm origem, dois dos maiores Grupos Portugueses da actualidade, o Grupo Jerónimo Martins e o Grupo Sonae, na logística, numa espécie de Oliveiras da Figueira modernos e devidamente actualizados?…

Temamos, sim, a miséria para que caminhamos iludidos pelas aparentemente muito generosas e solícitas boas-intenções que nunca conduziram qualquer povo do mundo a lado nenhum senão ao mais certo descalabro e a uma espécie de nova escravatura, eventualmente mais subtil mas talvez não menos real.

E não se diga que o Senhor Presidente da República não tem poder porque só pode dizer isso quem nunca atendeu, ou não sabe atender, ao verdadeiro poder do pensamento e da palavra.

Que saiba o Senhor Presidente da República atender ao verdadeiro poder do pensamento e da palavra, são os nossos votos para 2017.



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