…Le long des golfes clairs…

La mer

No intervalo de menos de quarenta anos, a França ofereceu a si e ao mundo, duas obras primas musicais, uma do cancioneiro erudito e outra do popular, ambas intituladas La mer.

Em 1905 e 1943, Claude Debussy e Charles Trenet, respetivamente, compõem La mer; a primeira no reportório da música clássica e a segunda no da música ligeira.

Uma foi parar à estante da música erudita, e a outra à da música popular, e ambas, ao coração de todos os que amam música, de Tombuctu a Bayreuth.

É longuíssimo e crespo o discurso entre a definição e separação da música dita clássica, ou erudita, da dita ligeira ou popular, e na ausência de um cânone, gosto da que vi escrita em qualquer lado, e que dá conta de que a diferença entre as duas, não reside no fato de a segunda ser ligeira, mas sim de a primeira ser realmente pesada.

E para baralhar mais as coisas, apareceram compositores geniais como George Gershwin e António Carlos Jobim, que transitam com a mesma qualidade e à vontade entre os dois géneros musicais.

Claude Debussy (1862-1918) é um dos mais extraordinários compositores da transição do século XIX para o XX. Perdura por todo o século, e pode neste exato momento ser ouvido com o mesmo prazer nos grandes palcos do globo, ou em excelentes gravações feitas com as grandes orquestras e filarmónicas, conduzidas pelos melhores maestros, e será ouvida no espaço, pelo futuro fora, agora que já existe o Asteróide 4492 Debussy, descoberto a dezassete de setembro de mil novecentos e oitenta e oito.

Foi simultaneamente discípulo, compagnon de route, e mestre, de outros músicos notáveis, de onde se destacam com particular nitidez, Maurice Ravel, Modest Mussorgsky, Gabriel Fauré, Igor Stravinsky, Manuel de Falla, Heitor Villa-Lobos, Alberto Ginastera, entre outros.

Desenvolveu quase todos os géneros, do sinfónico ao ballet, passando pelo incidental, ou de fundo, quase a nossa atual música ambiente ou de elevador, e por óperas de estilo muito particular, como O martírio de S.Sebastião, que compôs a partir de um libreto de Gabriell d’Annunzio, e principalmente Pelléas et Mélisandre, com libreto de Maeterlinck.

É também extraordinária a sua composição pianística, onde se destaca a Suite Bergamasque, e muito especialmente o seu terceiro momento, o maravilhoso Claire de Lune.

Mas talvez o melhor da sua obra tenham sido os trabalhos orquestrais, sobretudo, Prélude à l’après-midi d’un faune, Nocturnes, e claro, La mer.

Nas suas composições para orquestra, assistimos a uma modulação melódica sem desenvolvimento preciso, numa quase ausência de melodia, mas com fortíssima temática de imagens, harmonias propositadamente desarticuladas, e a presença constante da literatura, com destaque para a dos seus geniais amigos como Charles Baudelaire, Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, Mallarmé, e Gustave Flaubert que ele frequenta em salões, ateliers, mansardas, cafés e antros.

Aquelas combinações harmónicas vagas, capazes de absorver a melodia fluída, acabaram por caracterizar o seu estilo junto da critica, talvez frivolamente, como impressionista, como seria quase tudo o que era artístico em Paris naqueles anos, como aconteceria mais tarde, com a bossa nova e tudo o que seria brasileiro – mais do que meramente carioca – por alturas da passagem dos anos cinquenta aos sessenta, para alguma irritação sua, e igualmente de Maurice Ravel, e pese embora a grande amizade que tivesse com muitos dos pintores daquela escola, e o respeito e admiração pelo seu trabalho.

Claude Debussy começa a escrever La mer nas férias de Verão de 1902, em Villeneuve-la-Guyard, trabalhando a sua obra aqui, durante os dois anos seguintes, até a concluir em março de 1905, no Grand Hotel Eastbourn, no lado inglês do Canal.

Denominada pelo próprio autor como três esquissos sinfónicos, disposta ao longo de três secções (De l’aube à midi sur la mer, Jeux de vagues e Dialogue du vent et de la mer), um formato de clara preferência do autor, e utilizado noutras ocasiões, a obra foi estreada logo em outubro daquele ano em Paris, com uma receção algo morna, como vem sendo hábito das obras matriciais da humanidade.

A capa da partitura da edição original de 1905, é quase tão famosa quanto a obra, pois é feita a partir da Grande Onda de Kanagawa, do pintor japonês Katsushika Hokusai, pintada entre 1829 e 1833, amplamente reproduzida, e que atualmente pode ser observada nos melhores museus do mundo.

Registada em disco a primeira vez em 1928, tem sido gravada por todos os grandes maestros do mundo, de Arturo Toscanini a Herbert von Karajan, passando por Pierre Boulez e Simon Rattle, e com um particular destaque para a condução de Bernard Haitink à frente da Royal Concertgebouw Orchestra.

Alguns anos mais tarde um rapaz feliz, com ar feliz, compunha feliz outra La mer.

Charles Trenet (1913 – 2001), constrói a sua obra a partir de influências de outras formas, recebidas, caldeadas e misturadas com autenticidade. No seu caso, a ponte não é relevante em termos temporais, pois é uma música quase sua contemporânea, mas sim geográficos, porque é oriunda do outro lado do Atlântico, dos Estados Unidos da América: o jazz e o Rhythm and Blues, o celebérrimo R&B.

Estas influências permitiram a Charles Trenet libertar-se da presença quase asfixiante do acordeão da música parisiense, e introduzir na chanson uma sonoridade mais esbelta, leve, e solta, boa para golfos claros.

Escreve e publica poemas e romances, influenciado por Paul Éluard e Jacques Prévert. Apaixona-se pelo cinema, e graças a conhecimentos familiares, estagia na Alemanha com os nomes mais importantes do grande cinema alemão dos anos trinta, já a fazerem as malas para os Estados Unidos, chegando depois a ser assistente de produção em França.

Cultiva a amizade de artistas como Jean Cocteau e Max Jacob, e a admiração de Maurice Chevallier.

Com a guerra e a ocupação, a sua vida altera-se significativamente e nem sempre da forma mais nítida ou coerente. Cultiva amizades alemãs, tem problemas com os nazis por causa de uma eventual ascendência hebraica, canta na noite de Paris para qualquer público que o pretenda ouvir, e compõe Douce France, que passou à História como o hino da Resistência.

Com o final da guerra, finalmente consegue rumar ao outro amor da sua vida, que são os Estados Unidos, onde vive grandes temporadas, entrecortadas por estadias em França e digressões ao redor do mundo, vindo a Lisboa, ao Casino do Estoril, para a passagem do ano de 1962.

Mas antes disto tudo, em 1943, numa data que nunca conseguiu recordar com precisão, numa viagem de comboio entre Montpellier e Perpignan, rumo ao Mediterrâneo, compôs a sua e nossa La mer. Não para orquestra, mas para sorriso e assobio.

E este, permite voltar ao tão almejado critério que permita de forma rigorosa destrinçar a música erudita da ligeira, através do requisito do assobio. A música ligeira é a que se pode assobiar.

Mas mesmo este perdeu validade, quando damos pelo facto de que todos nós conhecemos pessoas que assobiam à perfeição trechos inteiros das áreas das suas óperas preferidas.

Embora este não seja de todo o meu caso, porque a última vez que tentei assobiar a habanera da Carmen, alguém ao meu lado levantou-se a julgar que era o hino da sua pátria, que acabei por não saber qual era.



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