Num debate em que estiveram representados estaleiros nacionais e armadores nacionais e estrangeiros, discutiram-se o estado e os desafios da economia circular em ambas as actividades, com destaque para a construção naval e utilização de tintas e revestimentos nos navios.

Não é possível que armadores e estaleiros navais respondam integralmente aos desafios ambientais colocados às suas actividades, quer no plano legislativo (nacional e internacional), quer no plano ecológico. Esta foi uma das conclusões das intervenções de representantes de estaleiros, armadores e fornecedores de ambos, bem como de projectistas de navios, durante a Conferência sobre «Economia Circular no Mundo Marítimo», promovida no passado dia 10 de Janeiro, pelo Jornal de Economia do Mar e a Associação de Indústrias Navais (AIN).

Tomando como pano de fundo a economia circular, os intervenientes reconheceram vantagens económicas e ambientais na reconversão dos materiais e equipamentos utilizados nas suas actividades, e afirmaram o seu empenho em minimizar o impacto ambiental do desmantelamento e recuperação de navios, assim como em encontrar soluções tecnológicas alternativas e mais amigas do ambiente aos actuais processos, equipamentos e técnicas de construção e reparação naval.

De acordo com o Plano de Acção para a Economia Circular (PAEC) para Portugal aprovado em Dezembro por Resolução do Conselho de Ministros, «economia circular», conforme preconizada no programa do actual Governo, é “um conceito estratégico que assenta na prevenção, redução, reutilização, recuperação e reciclagem de materiais e energia”.

Acrescenta o diploma que “substituindo o conceito de «fim -de -vida» da economia linear por novos fluxos circulares de reutilização, restauração e renovação, num processo integrado, a economia circular é vista como um elemento-chave para promover a dissociação entre o crescimento económico e o aumento no consumo de recursos, relação tradicionalmente vista como inexorável”.

Tomás Costa Lima, designer de embarcações e um dos oradores, admitiu que “na projecção de um navio coloca-se a questão de saber o que vai acontecer no final de vida da embarcação”. Que é o mesmo que dizer que já existe, entre os projectistas de navios, uma preocupação com os materiais utilizados na construção e o efeito que podem ter sobre o ambiente. E acrescentou que “o projectista procura soluções práticas e que vão ao encontro da economia circular, pensando numa embarcação que vai ter X anos de vida e que se possa adaptar às tecnologias que vão surgindo”.

Gonçalo Santos, em nome da EISAP – European International Shipowners Association of Portugal, uma associação representativa de armadores, afirmou que os seus associados “estão alinhados com todas as questões da economia circular”, mas reconheceu que “não é fácil para os armadores responderem a todos os desafios e à velocidade desejável”, em parte, devido à crise financeira e económica.

Outro representante de armadores, Hugo Bastos, da Douro Azul, empresa com 25 anos de actividade e que já encomendou mais de uma dezena de embarcações, considerou que a mesma tem vindo a inovar e exemplificou com a menção a painéis solares, iluminação LED e equipamentos de baixo consumo, que existem a bordo dos seus navios. E acrescentou que a empresa conta obter o Green Passport para os dois navios que vai receber este ano.

Recorde-se que o Green Passport é um documento para navios que os acompanham ao longo da sua vida útil, no qual consta um inventário de todos os materiais potencialmente perigosos para a saúde e o ambiente utilizados na construção das embarcações. É produzido pelo construtor e deve ser actualizado pelos sucessivos donos, quando os haja, e conter indicação das modificações feitas em termos de materiais. Deve ser entregue pelo proprietário no momento de entrega para abate e constitui um factor de valorização do seu preço nessa ocasião.

Bruno Costa, da Atlanticeagle Shipbuilding, dona dos activos dos Estaleiros do Mondego, também esteve no painel de oradores e referiu que os seus estaleiros “estão atentos às questões da economia circular”, admitindo que existe preocupação com o tratamento de resíduos perigosos. E recordou que neste momento, a empresa está numa fase de processo de certificação ambiental, um passo que não é vulgar entre estaleiros de construção e reparação naval, mas que contribuiu para a sua diferenciação e vai ao encontro da economia circular.

Outra forma de obter diferenciação dos estaleiros é a inovação na construção, designadamente na componente ambiental. E nesse ponto, a sua empresa tem currículo, como o recurso à tecnologia ASV, baseada no design do casco e que permite uma redução significativa do consumo de combustível, com tudo o que isso implica de benefício para o ambiente. Além disso, Bruno Costa referiu que a empresa também está a desenvolver uma embarcação de passageiros integralmente eléctrica.

A inovação, aliás, foi um aspecto destacado pelo representante dos armadores da EISAP, maioritariamente estrangeiros e registados no Registo Internacional de Navios da Madeira (MAR), onde está registada a grande maioria dos navios com pavilhão português. Confrontado pela audiência com a eventualidade de os seus associados não contribuírem significativamente para a economia portuguesa, Gonçalo Santos referiu que os armadores da EISAP são sensíveis às inovações que lhes sejam apresentadas, tecnologias ou de serviços, desafiando os fornecedores nacionais a exporem as suas inovações aos armadores.

Igualmente representada no painel esteve a Arsenal do Alfeite S.A., uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicas, localizada em domínio público militar e cujo principal cliente é a Marinha portuguesa, o que lhe impõe especiais obrigações de serviço público, sublinhou Andreia Ventura, presidente do Conselho de Administração.

Esta responsável notou ainda que a preocupação ambiental nem sempre foi uma preocupação da Arsenal do Alfeite, antecessora da Arsenal do Alfeite S.A., dada a sua origem militar. Por isso, desde que a sua sucessora iniciou actividade, em 2009, a sustentabilidade ambiental foi sendo cultivada e objecto de um grande esforço.

Uma realidade testemunhada pelo moderador do painel, Jorge Antunes, da Tecnoveritas, que acentuou o progresso feito nos estaleiros da empresa, designadamente, em matéria de aproveitamento energético. Hoje, a Arsenal do Alfeite S.A. tem uma certificação ambiental, condicionada à implementação de medidas num prazo de quatro anos “e que estamos a implementar”, acrescentou Andreia Ventura.

Os estaleiros do grupo ETE, empresa também opera como armadora, também estiveram representados no painel, através de Miguel Trovão. Este responsável referiu que nos estaleiros a prevenção é fundamental. E destacou que actualmente existem restrições ao trabalho nocturno, colocadas por queixas quanto ao ruído e que colocam em causa a competitividade de uma actividade como a reparação naval, que requer ciclos de 24 horas.

Outra matéria debatida no conferência e que tem impacto na economia circular foi a das tintas, cuja utilização, tratamento e reaproveitamento requer uma atenção especial devido aos seus componentes. Sobre isso falou especialmente Pedro Maia, da Hempel, empresa fornecedora de revestimentos para os mercados marítimo, incluindo navios, contentores e embarcações de recreio. Apesar da evolução de processos, vários oradores admitiram a dificuldade em ultrapassar certas situações, como a pulverização de tintas ou os resíduos que escorrem pelas rampas. Realidades que traduzem a impossibilidade de resposta a todos os desafios ambientais e tecnológicos ao ritmo que seria desejável.

Numa intervenção fora do painel, Ventura de Sousa, da AIN, representativa dos estaleiros nacionais, chamou a atenção para a questão da diferença de condições do desmantelamento de navios na Europa e na Ásia. Uma matéria que, segundo afirmou, coloca em lados opostos dois sectores tradicionalmente unidos na defesa das suas actividades, como são os estaleiros e os armadores.

De acordo com Ventura de Sousa, a Europa procurou legislar para, mantendo preocupações ambientais avançadas, conseguir tornar o desmantelamento de navios nos seus estaleiros uma actividade competitiva face aos estaleiros asiáticos, cuja competitividade se tem obtido, em muitos casos, com sacrifício da segurança laboral e da protecção do ambiente.

Uma solução encontrada passaria por incentivos aos estaleiros europeus, assegurados pelos armadores. Estes terão questionado a solução, alegadamente por violação de regras de concorrência da Organização Mundial do Comércio, e mantido que continuariam a recorrer a estaleiros asiáticos, que oferecem melhores condições de mercado.

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