Portugal é uma nação de paradoxos e enigmas, entre os quais está a sua sempre tão surpreendente capacidade de imaginação a par de uma igualmente tão estranha quanto não menos surpreendente incapacidade de transformar essa mesma potência da imaginação em verdadeiro e imediato acto consequente.

Portugal é, de facto, uma notável e singularíssima nação, cheia também dos mais admiráveis paradoxos e dos mais insondáveis enigmas.

Entre os muitos paradoxos e inumeráveis enigmas da singularíssima nação, está a sua sempre tão surpreendente quanto extraordinária capacidade de imaginação a par de uma nem menos surpreendente nem menos extraordinária incapacidade de transformar essa mesma potência em imediato acto, ou seja, uma certa incapacidade de proceder, como vulgarmente se diz, à passagem da teoria à prática, perdendo-nos, de facto, no drama da realização.

Nada de novo, bem pelo contrário, algo tão antigo e por tantos notado que o que mais espanta é a sua permanente actualidade como se o drama da realização se tivesse tornado mesmo numa das mais notáveis, constantes e atávicas características do modo de ser português.

Estranho fado.

E o que tem isto a ver com o Mar?

Como se sabe, um dos primeiros, senão mesmo o primeiro problema no que respeita actualmente à economia do mar em Portugal, reside na dificuldade de licenciamento de um qualquer empreendimento, podendo este arrastar-se não apenas por anos e anos, mas ficar, inclusive, dependente do mais arbitrário humor e disposição de quem, nas dezenas de entidades que sobre um mesmo assunto são chamadas, ou podem ser chamadas, a pronunciar-se, goza de uma espécie de uma inquestionável e plenipotenciária decisão.

Sendo um primeiro decisivo momento na ordem prática que nenhum Ministro, Secretário-de-Estado ou seja quem for, desconhece a determinante importância, aí existindo um problema, esperava-se ser exactamente um assunto a que todos os Governos e governantes dedicassem primordialmente o seu tempo, senão para o extirpar e resolver de uma vez por todas, pelo menos, para tentar mitigar, dentro do possível, as suas mais perversas e nefastas consequências.

Todavia, não, com toda a certeza, por falta de consciência e capacidade dos sucessivos governantes, o facto é que nada mais parece suceder senão andar-se há longos anos em furioso círculo vicioso a criar um nó górdio do qual não há Alexandre algum que se figure capaz de nos libertar.

Nos finais de 2011, talvez início de 2012, a memória já não é o que foi, num Seminário dedicado exactamente ao Licenciamento Marítimo, foram apresentados alguns testemunhos das muitas agruras vividas por quem quer investir em Portugal, tendo havido um, entre vários, que se pode como cúmulo e perfeita ilustração do exacto desvario de que se fala e a que se está ou pode chegar.

O caso é este. Alguém que pretendia investir cerca de 3 milhões de euros num projecto de aquacultura, tendo de iniciar processo do respectivo licenciamento, ficou logo a saber que, dependendo da localização do mesmo, poderiam chegar a 24 as entidades que teriam de se pronunciar vinculativamente sobre o mesmo, além de outras poderem vir a ser igualmente chamadas pelas primeiras a dar igualmente parecer consultivo.

Nada de extraordinário.

Encurtando a história, passados três anos, porém, requerimento para Norte, requerimento para Sul, papel para trás, papel para a frente mais peregrinação sistemática por todas as sucessivas entidades intervenientes no processo, o projecto acabou chumbado pela Delegada de Saúde da área onde o mesmo se encontrava planeado para ser instalado. Como estamos em Portugal, nação onde todos se conhecem mais ou menos uns aos outros, ou quase, conhecendo o investidor até pessoalmente a referida Delegada de Saúde, decidiu perguntar-lhe directamente a razão de tal decisão, recebendo a seguinte luminosa e muito esclarecedora resposta: porque não percebo nada disso!…

Ah!, sim, dir-se-á que todas as decisões necessitam de ser devidamente fundamentadas e que, talvez, a história não haja sido exactamente assim…

É possível.

O testemunho é indirecto e não temos, de facto, forma de o confirmarmos plenamente, não devendo assim darmo-lo como absolutamente exacto, sem mais?…

Eventualmente, mas sabemos, como todos quanto alguma vez tenham tido a necessidade de licenciar um qualquer projecto ou o simples infortúnio de se verem obrigados a tratar de um qualquer processo com o Estado sabem, as kafkianas dificuldades pelas quais não raramente se passa para o concluir, como sabemos também, embora disso nem todos conhecimento possam e devam ter já, da presença do então Secretário de Estado do Mar, Manuel Pinto de Abreu, sabendo todos também como, não obstante, desde então até hoje, pouco se adiantou na resolução do drama, sendo exactamente esse o verdadeiro enigma de que falamos.

Independentemente do julgamento que cada um possa ter  do desempenho do anterior Secretário de Estado do Mar,  não se afigura legítimo acusá-lo de não ter tido, no mínimo, plena consciência do problema, tanto mais quanto, como poucos Secretários de Estado, fez questão de estar quase permanentemente presente no referido Seminário, de princípio a fim, denotando a sua real preocupação de se inteirar-se directa e integralmente dos principais problemas apresentados e dos testemunhos prestados relativamente aos licenciamentos, como não se afigura ter muito sentido admitir ou acusá-lo de falta de visão, capacidade de acção e comando, quando dirigiu como dirigiu, um projecto de tão decisiva importância como o da EMEPC, Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental.

Contudo, tendo a visão, a plena consciência dos problemas e a capacidade pessoal para imaginar os consequentes processos para a sua resolução, porque estamos hoje praticamente como em finais de 2011, inícios de 2012, pouco mais tendo sido feito? Não se impõe esta interrogação?

Certo, entretanto foi publicada, ainda pelo anterior Governo, a Lei de Bases de Ordenamento e Gestão do Espaço Marítimo, um dos elementos indispensáveis a todo o processo, mas pouco mais, e faltando esse pouco mais, a Lei de Bases de Ordenamento e Gestão do Espaço Marítimo também pouco mais é, até ao momento,  do que uma simples peça avulsa de anódino significado, escassa repercussão e nula consequência, por mais simpático que fora todo a eloquente regra do diferente tácito, entre outros muito correctas e necessárias disposições.

E no meio de tudo isto, para cúmulo da ironia, de outro elemento decisivo, como o famigerado POEM, Plano de Ordenamento do Espaço Marítimo, iniciado há oito anos, ainda no designado II Governo de José Sócrates e incluído então no plano do que estava então para vir a ser o tão igualmente necessário e não menos conhecido Simplex do Mar, pouco mais se sabe a não ser que continua algures em desenvolvimento, agora sob responsabilidade da DGRM e, segundo consta, sob nova designação também, como se isso fosse muito relevante.

Tudo isso é passado, dir-se-á, mas mesmo sendo passado, não deixa de ser um passado que continua a acossar-nos sem descanso, diariamente, hora a hora, segundo a  segundo da nossa vida.

Não há entretanto um novo Governo e um novo Primeiro-Ministro que afirma explicitamente ser o Mar uma prioridade para Portugal, fazendo reflectir as suas palavras na orgânica do governo com um Ministério exclusivo do Mar e um Ministro, no caso, Ministra, exclusiva para Mar?

Sim, há tudo isso mas, passados oito ou nove meses de novo Governo, onde estamos, o que tem sido feito?

Já há plano para os portos? Já há imposto da tonelagem? Já há processo de licenciamento ágil e expedito como é necessário todos aguardam ansiosamente que haja?

E sedenta como está a nossa economia de investimento, nacional e estrangeiro, não deveria ser exactamente essa, a questão do licenciamento, a prioridade das prioridades?

O que se passa?…

O que se passa não se percebe mas entretanto o que também se sabe é a falta de processos de licenciamento ágeis e expeditos, lineares e perfeitamente compreensíveis, poder estar a colocar em risco projectos de investimento estrangeiro acima de 100 milhões de euros, uma vez não encontrarem os potenciais investidores quem os ajude no emaranhado processual e legislativo que tudo possa conduzir a bom termo, como, em diferente plano, a notícia desta semana no que se passa quanto ao Registo da Mar e aos mais de 600 processos em atraso, não deixa de ser igualmente reveladora.

É onde estamos.

E se tudo agora correr mal estamos à espera que os mesmos investidores voltem para o ano, desculpando os nossos atrasos e todas as nossas demais faltas e debilidades, para ver se tudo se encontra já em novo estádio de desenvolvimento para poderem avançar, finalmente, com os seus projectos?

Não sabemos todos o que se designa por custo de oportunidade?

Tal como referido em relação ao anterior Secretário de Estado, tampouco da actual Ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, não será legítimo admitir não ter plena consciência de todos estes problemas, como, por tudo quanto tem escrito e proferido em múltiplas intervenções públicas, tanto antes como já em pleno exercício das suas actuais funções, se poderá dizer não ter uma visão perfeitamente clara do que entende deverem ser as linhas mestre de uma política do mar, sendo mesmo difícil discordar das mesmas, como ainda, por tudo quanto realizou enquanto Secretária de Estado dos Transportes, se poderá duvidar, por um momento sequer, da sua determinação e capacidade de  acção.

Todavia, como anteriormente, a questão mantém-se e agrava-se até: porque leva tanto tempo a fazer, ou não se faz sequer, o que tem de ser feito e suposto seria ser feito exactamente como dito fico que feito seria?

Neste momento há quem diga que a existência de uma Ministra do Mar, com uma posição e acção mais institucional do que executiva não ajuda porquanto todos se sentem mais desacompanhados e quase mesmo órfãos, como sucedia com a anterior figura de um Secretário de Estado mais proactivo e directamente envolvido nos assuntos correntes.

Talvez.

Talvez mas a questão não é essa e não respeita a esta ou aquela situação em particular mas é, infelizmente, muito mais vasta e grave: porquê, de facto, este sempre tão estranho, dramático e devastador hiato entre a potência e o acto?

Os mais eruditos talvez tenham tendência a regressar a Santo Agostinho e à questão da conversão de Mário Vitorino, ou seja, à interrogação ou meditação sobre o que impediria alguém, na circunstância, de transitar do conhecimento pensado à consequente prática dos actos de culto, daí surgindo, para resolução de tão momentoso caso, o conceito de «vontade» para a qual os gregos não tiveram sequer palavra e os romanos olimpicamente desprezaram, como Nietzsche e Hannah Arendt não deixaram de notar sem saberem contudo deduzir as amplas consequências que Orlando Vitorino viu e luminosamente expôs na sua Refutação da Filosofia Triunfante.

Talvez não seja necessário ir tão alto ou tão longe.

Temos nós, portugueses, intrínseca incapacidade de transitar da potência ao acto? Em estado de necessidade não provámos exactamente o inverso? Desde a contratação de Paulo Macedo por Manuela Ferreira Leita para a Autoridade Tributária e Aduaneira até hoje, não viemos a construir o mais implacável, impiedoso e totalitário sistema de cobrança de impostos talvez alguma vez visto, causa suficiente, noutros tempos, eventualmente, para a própria queda e falecimento da então toda poderosa URSS por simples vergonha de nada semelhante terem conseguido alcançar?

Com certeza.

Então, repetimos, porquê o hiato?

Se não é por falta de capacidade, como provado, quando necessário, é porquê? Será porque se pretende que assim seja mesmo?

Um enigma!…

Um enigma e um drama no qual nos afundamos progressivamente até, um dia, talvez, não termos já capacidade de regressarmos vivos à superfície.

Um enigma, porém, não é um mistério, sendo, por consequência, passível de perscrutação e compreensão, assim como um drama, não sendo uma tragédia, ou seja, um conflito irredutível, se configura igualmente como uma situação em evolução, sempre passível de resolução ou, dir-se-á até mesmo, redenção.

E no final de todo este longo excurso, em que ficamos? Satisfazemo-nos com a simples constatação, mais ou menos académica, como soe dizer-se, do que aí está e é patente a todos, acrescentado a sacrossanta pergunta tão simplesmente retórica quanto inócua se formulada sem mais, ou seja do porquê, sem verdadeiramente mais indagar, ou, mesmo correndo o risco de errar, procurar-se-á, como a todos cumpre, ir mais longe?…



Um comentário em “O Drama da Realização”

  1. Heleno Queiró diz:

    A propósito, no Publico de hoje (26.8.2016):

    Pedido de licenças de aquicultura passa de três anos para três meses
    Governo quer tornar Portugal o país europeu mais competitivo do sector

    https://www.publico.pt/economia/noticia/licenciamento-de-aquicultura-passa-de-tres-anos-para-tres-meses-1742131

    A ver, como dizem os espanhóis!

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