Hoje vamos continuar a falar de abalroamento e vamos terminar este tema abordando as Regras de Lisboa de 1987 criadas pelo actual Comité Maritimo Internacional.
Estas regras não têm a força de lei e não podem ser impostas a ninguém, têm de ser adoptadas pelas partes livremente depois de ocorrido o abalroamento.
São de aplicação caso a caso e foi intenção aquando da sua criação que obtivessem o reconhecimento internacional do circuito de transporte e seguro maritimos e que fossem sempre aplicadas em situações de abalroamento de forma a terem a força de costume.
Estão dividas em dois grupos as de ordem alfabética e as de ordem numérica.
Antes das regras propriamente ditas surgem nas Regras definições de algumas palavras, o que significam no contexto das Regras de Lisboa. A introducao destas definições nas Regras tem como objectivo além da inerente uniformização de conceitos, a de facilitar a aplicação destas regras uma vez que não existe uma definicao idêntica em todos os países.
Assim começa por definir:
– Navio é uma embarcação, barco, máquina, equipamento ou plataforma navegável ou não envolvidos numa colisão.
– Colisão é qualquer acidente que envolva dois ou mais navios que cause perdas e danos mesmo que não tenha de facto ocorrido qualquer contacto.
-Requerente ou demandante é a pessoa singular ou colectiva que sofreu perda ou danos (que não morte ou lesão corporal) na decorrente de uma colisão.
– Danos é a compensação financeira paga ao demandante (indemnização).
– Perda total significa a perda total real do navio ou danos cujos custos de salvar e reparar  excederiam o valor de mercado do navio ao tempo da colisão.
– Propriedade significa a carga, mercadorias e outras coisas a bordo do navio.
– Frete significa a remuneração paga pelo transporte no navio de bens ou passageiros ou pela utilização do navio.
-Detenção é o periodo de tempo durante o qual o que sofreu o dano o demandante/requerente fica privado do uso do navio.
Vamos agora abordar as regras alfabética:
Regra A
Estas regras apenas podem ser adoptadas pelas partes no caso de virem a ser apresentados pedidos de indemnização na sequência de abalroamento.
A sua adopção não implica o reconhecimento de responsabilidade.
Regra B
Quando um navio está envolvido numa colisão estas regras aplicam-se na determinação da indemnização/danos.
Estas regras não se aplicam à determinação de responsabilidade nem afecta direitos de limitação da responsabilidade.
Regra C
Tendo em conta o estipulado nas regras numeradas o demandante terá direito a uma indemnização pelos prejuízos que razoavelmente tenham surgido em consequência directa e imediata do abalroamento (nexo de causalidade).
Regra D
Em aplicação da regra C e das regras numeradas a indemnização deverá colocar o Requerente na mesma situação financeira que ele teria se o abalroamento não tivesse ocorrido.
Regra E
O ónus de provar os prejuizos sofridos pertence ao Requerente/demandante da indemnização.
Não serão recuperáveis os prejuízos que o Requerente poderia ter evitado ou mitigado se tivesse agido com razoável diligência.
Passamos agora às regras numeradas:
Regra I-Perda total
1. Caso haja perda total do navio o demandante terá direito a uma indemnização no montante equivalente ao valor de mercado que teria de pagar para comprar um navio idêntico à data da colisão. Quando nenhum navio idêntico esteja disponível o demandante tem direito a uma indemnização no valor que o navio teria à data da colisão tendo em conta: o tipo, idade, condição e natureza da operação do navio e outros factores relevantes.
2. A indemnização a pagar no caso de perda total deverá incluir:
a) Reembolso de compensação por salvação marítima, de avarias grossa e de outras despesas em que incorreu o demandante que sejam razoavelmente devidas em resultado da colisão.
b) Reembolso de quantias que o demandante tenha se tornado legalmente responsável a pagar a terceiros por responsabilidade contratual, estatutária ou por outras obrigações legais em resultado do abalroamento.
c) Reembolso pelo frete perdido e do valor do combustível, equipamento de carga e descarga perdidos em resultado da colisão e que não estejam incluídos no valor do navio apurado de acordo com o número 1 desta regra.
d) Reembolso por perda de frete segundo alínea c), compensação por perda do uso do navio por período razoavelmente necessário para encontrar um substituto quer o navio seja de facto substituído ou não. A compensação deverá ser calculada de acordo com a Regra II, excluindo-se qualquer valor que o Demandante tenha direito a receber durante esse período no âmbito da Regra IV.
Regra II- Danos no navio
1. Caso o navio sofra danos que não impliquem perda total de acordo com o definido na regra I o demandante terá direito a receber uma indemnização por:
a) Valor das reparações temporárias feitas no navio e o valor das reparações definitivas, ambos dentro de critério de razoabilidade
O custo destas reparações deverão incluir o custo da doca seca, limpeza do tanque, taxas portuárias, supervisão e classificação por inspectores, incluindo outras despesas de doca seca e/ou de cais pelo tempo despendido nas reparações ao navio.
No entanto quando as reparações sejam feitas em conjunção com o dever do dono do navio de assegurar a navegabilidade deste ou com outras reparações decorrentes de outro incidente ou reparações de rotina as despesas de doca seca e de cais e outras despesas temporais ficarão limitadas ao tempo de reparação dos danos decorrentes exclusivamente da colisão.
b) Despesas de salvação, avarias grossas e outras despesas razoavelmente incorridas na decorrencia da colisão.
c) Reembolso de quantias em que o demandante tenha incorrido legalmente e que tenha pago a terceiros por responsabilidade que assumiu em contrato, estatutariamente ou noutras obrigações legais.
d) Reembolso pela perda do frete e do custo de substituição de combustivel e de equipamento de carga e descarga decorrentes do abalroamento e que não se encaixem nas despesas constantes da alinea a) desta regra.
2. A indemnização inclui também:
a) Reembolso pela perda do frete do constante na Regra II n° 1 alínea d), tem direito a uma compensação pela perda de lucros/receitas na decorrência da colisão. O cálculo desta compensação é feito com base nas receitas brutas do navio perdidas durante o período em que o mesmo ficou retido, calculado por referência à receitas do navio ou por referência às receitas que navio semelhante teria no mesmo ramo de operação comercial, deduzindo das receitas brutas os custos operacionais que incorreriam naturalmente na decorrência da obtenção dessas receitas, como seja o pagamento de aluguer, de tripulação e combustível, despesas portuárias e seguro.
b) Custos operacionais e despesas em que de facto incorrer durante a detenção do navio, outras que não as constantes do n° 1 da Regra II.
3. Na interpretação da Regra II n° 2 aplicar-se-à o seguinte:
a) Quando ocorra detenção do navio durante a execução de um contrato de fretamento por viagem (carta de partida), transporte não regular, e esta detenção não dê lugar ao cancelamento do contrato de fretamento, será calculada uma compensação aplicando as receitas normais decorrentes das duas viagens anteriores e das duas viagens subsequentes à detenção.
Quando não haja estas referências serão tidas em conta as receitas de outras viagens ou se também não existirem serao tidas em conta as receitas da viagem na qual ocorreu o abalroamento.
Se na consequência da detenção for cancelado o contrato de fretamento e não tiver sido pago o frete o valor da perda deste será devidamente compensado.
b) Quando a detenção ocorra quando o navio está a operar em serviço de linha (transporte regular) a compensação será calculada do seguinte modo:
i. Quando a detenção ocorra na viagem em que ocorreu a colisão aplicam-se as receitas diárias dessa viagem às receitas que existiriam diariamente caso o abalroamento não tivesse acontecido.
ii. Quando a detenção noutra viagem que o navio esteja a fazer aplica-se à detenção as receitas normais obtidas nas duas viagens anteriores e posteriores. Quando não existam essas viagens serão tidas em conta outras viagens feitas, se não existirem serão tidas em conta as receitas que navio semelhante obteria a executar o mesmo tipo de operação.
c) Quando a detenção ocorra enquanto o navio está a operar em fretamento a tempo a compensação deverá incluir a perda de frete durante a detenção. Se em consequência da detenção o contrato de fretamento for cancelado a compensação incluirá o frete que deveria de ter sido pago durante o tempo em que o navio não esteve a operar, mesmo que tenha tido alguma receita durante esse período de detenção.
4. Quando a reparação dos danos está a ser feita no navio em conjugação com o dever do dono do navio de ter este em condições de navegabilidade ou com outras reparações de outros incidentes ou são adiadas e feitas com reparações de rotina a compensação pela detenção incluirá apenas o período em que de facto o navio esteve a reparar os danos da colisão.
Regra III-Propriedade a bordo
1. O demandante terá direito a receber indemnização se a propriedade tiver sido perdida ou danificada em consequência da colisão.
2. Caso a propriedade tenha valor comercial a compensação será calculada do seguinte modo:
a) se a propriedade for perdida o demandante terá direito a ser reembolsado pelo valor de mercado desta no porto de destino ao tempo em que deveria de ter chegado, menos as despesas não despendidas.
Quando o valor de mercado da propriedade não possa ser determinado o valor da propriedade será aquele que tem ao tempo do embarque acrescido do frete e seguro em que o demandante incorreu, acrescido de uma margem de lucro calculada com base em 10% do valor da propriedade.
b) Se a propriedade é danificada o demandante terá direito a compensação igual à diferença entre o valor da propriedade em condições normais teria no destino e o seu valor com a danificação.
Quando surjam danos na propriedade surjam do prolongamento da viagem após a colisão, a compensação será definida com base nos mesmos critérios. No entanto se o dano ocorre em consequência de baixa no mercado durante o prolongamento não haverá direito a qualquer compensação.
3. No caso de outra propriedade que não carga o demandante tem direito a:
a) Em caso de perda ao valor razoável da sua substituição.
b) Em caso de ficar danificada e possa ser reparada ao valor razoável de reparação não ultrapassando o seu valor ou o custo da sua substituição.
Regra IV- Juros
1. Juros suportados sobre os danos além do montante geral são recuperáveis.
2. Para reivindicações segundo a Regra I n° 1 juros serão calculados a partir da data de colisão até à data de pagamento.
Para as outras reivindicações os juros contam-se a partir da data em que a perda foi suportada ou em que a despesa ocorreu até à data de pagamento.
3. Quando de acordo com a Regra V os danos são para serem calculados em Direitos de Saque Especiais (DSE) a taxa de juro a aplicar será a taxa de Londres por três meses ligados a depósitos no período em que incorrem juros. Caso contrário a taxa de juro será de 10% ao ano.
Regra V- Moeda
Caso as partes não tenham acordado quanto à moeda específica a aplicar no cálculo das compensações/danos será adoptado o seguinte:
– Perdas ou despesas serão convertidas da moeda em que terão incorrido em Direitos de Saque Especiais (DSE) à taxa de câmbio em vigor no dia em que as perdas ou despesas ocorreram;
– Os montantes finais devidos serão calculados em Direitos de Saque Especiais (DSE) e o saldo será pago ao credor demandante na moeda por este escolhida à taxa de câmbio em vigor na data de pagamento;
– Quando não é citada nenhuma taxa de Direitos Especiais de Saque é aplicada à moeda, as conversões em câmbio de e para DSE serão feitas por referência ao dólar americano.

Alguns exemplos práticos para perceber melhor estas regras:
Há uma colisão entre dois navios, ambos acordam em aplicar as Lisbon Rules em matéria de indemnização por abalroamento. Houve perda total de um dos navios, incluindo mercadoria que se encontrava a bordo e prejuizos no outro navio e na carga que transportava
A) Quanto ao navio com perda total:
O proprietário do navio tem direito a uma indemnização que o coloque em situação semelhante à que tinha antes da colisão (Regra D) e apenas relativamente aos prejuízos que sofreu em consequência directa e imediata da colisão (Regra C). Esses prejuizos terão de ser provados por ele (regra E).
No que se refere aos valores a indemnizar aplica-se o que consta da regra I e juros nos termos da Regra IV e escolher a moeda (Regra V).
B) Quanto às cargas perdidas nesse navio:
O dono da carga terá direito a receber uma indemnização calculada nos termos da Regra III, n° 1 e 2 alínea a) e respectivos juros nos termos da Regra IV, devendo escolher a moeda (Regra V).
C) Quanto ao navio danificado:
Aplica-se tudo o que foi dito anteriormente quanto ao navio com perda total excepto a parte em que se refere à perda total aplicando-se neste caso o que se encontra na Regra II.
D) Quanto às mercadorias danificadas:
Aplica-se o que consta no n° 1 e 2 alínea b) da Regra III e tudo o mais que foi dito quanto à carga perdida com excepção ao que se refere à perda em específico da mercadoria.
2. E se no caso anterior o navio perdido tiver agido sem a diligência adequada?
Neste caso se o outro navio provar que o navio que se perdeu poderia ter evitado ou mitigado a sua perda se tivesse agido com a diligência necessário não haverá lugar a qualquer indemnização para compensar os prejuizos sofridos (Regra E)

E assim terminamos o tema abalroamento, falamos do regime internacional e do regime nacional aplicável a esta matéria e terminámos falando nas Regras de Lisboa.
No próximo mês iremos continuar com o tema das operações marítimas, desta vez vamos falar das arribadas forçadas.



Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

«Foi Portugal que deu ao Mar a dimensão que tem hoje.»
António E. Cançado
«Num sentimento de febre de ser para além doutro Oceano»
Fernando Pessoa
Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto.
Vergílio Ferreira
Só a alma sabe falar com o mar
Fiama Hasse Pais Brandão
Há mar e mar, há ir e voltar ... e é exactamente no voltar que está o génio.
Paráfrase a Alexandre O’Neill