Agentes económicos da náutica de recreio criticam obstáculos regulamentares no Seminário promovido pelo Jornal da Economia do Mar durante a Nauticampo.

Embora existam trabalho, clientes e condições geográficas favoráveis para o seu desenvolvimento, a náutica de recreio em Portugal enfrenta obstáculos de natureza infra-estrutural, regulamentar e administrativa que prejudicam o sector e impedem a obtenção de resultados ainda melhores.

Esta pode bem ser a síntese das intervenções de um painel de oradores produzidas no seminário “Náutica de Recreio – O Diálogo Decisivo; Para que Saibamos ver a Náutica de Recreio Como o Mundo a Vê”, dedicado à internacionalização deste sector e organizado pelo Jornal da Economia do Mar no âmbito da 48ª edição da Nauticampo, que decorreu em Lisboa de 5 a 9 de Abril.

A principal crítica do painel, que contou com a presença de Hugo Henriques, administrador da SOPROMAR Centro Náutico, Pedro Vale, fundador da Boatcenter, José Manuel Rodrigues, consultor em náutica de recreio, João Mendonça, administrador da Water X, Bruno Costa, administrador da AtlanticEagle Shipbuilding, e Rodrigo Moreira Rato, envolvido na organização portuguesa da regata Volvo Ocean Race, foi ao Estado.

 

Empresários criticam excesso de intervencionismo público

A obediência a determinadas regras impostas pela legislação nacional sobre náutica de recreio, actualmente alvo de uma proposta de alteração por um grupo de trabalho, uma fiscalidade agressiva, uma fiscalização pouco simpática para os navegadores, particularmente os estrangeiros que cruzam as águas portuguesas, e infra-estruturas e serviços deficientes para uma clientela exigente, constituem barreiras que os operadores do sector só a custo conseguem ultrapassar.

Pedro Vale, por exemplo, entende que o Estado peca por criar problemas desnecessários. Regras sobre determinados equipamentos de bordo ou material pirotécnico exigidos por lei, são inadequadas e por vezes, complicam e prejudicam a actividade em vez de a beneficiarem, entende o empresário. “Por vezes, basta que não nos atrapalhem”, refere.

José Pedro Henriques entende que existem “situações internas que afastam o mercado externo” e assinala a desvalorização a que têm sido votadas as infra-estruturas para a náutica de recreio, cujas “condições físicas, por vezes, impedem a resolução de certos problemas”. Considera também que “institucionalmente tem faltado apoio administrativo às empresas”, de um modo que lhes permita resolver questões “de uma forma muito mais célere” e que “não crie obstáculos a quem quer desenvolver o seu negócio“.

O mesmo consultor critica ainda a realização do contrato para reparação de submarinos nos estaleiros do Alfeite, nos quais entende que poderia ter sido feita uma aposta no segmento dos cruzeiros, atendendo às condições ímpares do estuário do Tejo para o efeito. Critica igualmente a ausência de referências à náutica de recreio na Estratégia para o Aumento da Competitividade Portuária para o porto de Lisboa, recentemente apresentada pelo Governo.

Um dos efeitos negativos da complexidade do sistema regulamentar na náutica de recreio nacional é o afastamento dos nautas. “Faz-me confusão ver pessoas a mudar o pavilhão das embarcações por uma questão de registo”, refere João Mendonça. “Simplifiquemos os processos”, apela o empresário, cujos clientes são essencialmente “do sector corporativo”. Especializada em eventos náuticos, a sua empresa tem no turismo internacional 65% do seu negócio.

João Mendonça recorda também que com o afastamento dos nautas, perdem-se efeitos multiplicadores gerados pela náutica de recreio. Não é invulgar alguns desses nautas chegarem a Portugal, comprarem uma embarcação e, face à simpatia das pessoas, ao clima do país, ou simplesmente por causa das condições para a prática da actividade, comprarem também uma residência.

Pedro Vale, ligado à compra, venda e aluguer de embarcações de recreio, nota que “no Algarve existem muitos clientes residentes fora de Portugal, mas que têm cá uma segunda habitação”. Ele próprio teve um cliente britânico que lhe comprou uma embarcação há seis anos, que posteriormente adquiriu outro e que há três anos ainda outro. “E tem casa em Portimão”, refere, acrescentando que “são negócios que geram retorno e são interessantes do ponto de vista económico”.

De facto, esse efeito existe e não é desprezível. De acordo com um estudo de 2016, realizado pela Docapesca, Universidade do Algarve e Centro Internacional de Investigação em Território e Turismo (CIITT), a presença de um nauta numa infra-estrutura náutica (porto ou doca de recreio) chega a representar 2,89 euros de despesa como turista por cada euro gasto em náutica de recreio. O estudo concluiu que 26% das despesas do nauta são em náutica e que 74% são em turismo.

 

Factores de competitividade

Regras e processos mais simples poderiam potenciar outros factores favoráveis à náutica de recreio e de que o país dispõe, nem sempre bem aproveitados. Um deles é a imagem dos portugueses como especialistas em náutica. Vários dos empresários presentes já se confrontaram com isso no estrageiro. João Mendonça admite que somos reconhecidos como “um país de navegadores, isso é algo que as pessoas lá de fora sabem”. Todavia, nem sempre sabem que também construímos barcos. Ele próprio esteve envolvido na concepção e design de embarcações de recreio. “E cá, quando digo que estou a desenhar barcos, riem-se; lá fora não; é uma coisa que não sei explicar”, refere com surpresa.

A construção naval é o negócio de Bruno Costa e da AtlanticEagle Shipbuilding, criada em 2001 e que adquiriu a concessão dos estaleiros navais do Mondego, na Figueira da Foz, hoje vocacionados para a construção naval tradicional, “de aço e alumínio”, como lhe chama o empresário. Também aí se sentem dificuldades burocráticas e outras, de falta de financiamento. “O país tem uma tradição nesta área reconhecida lá fora e deparamos com dificuldades e faltas de apoio que não podem acontecer”, refere, acrescentando que “eu não posso ganhar um concurso e depois ter problemas de financiamento”.

Neste momento, a sua empresa quer diversificar e diferenciar actividade, “porque se não o fizermos não vamos a lado nenhum”, explica. E adianta que quer “entrar na área da construção de iates, que é uma aposta forte e que já deu os primeiros passos”, acrescentando que a empresa já tem acordos para a construção de iates com clientes estrangeiros. “É uma área interessante, com números de margens muito simpáticos, e se as coisas evoluírem, contamos ter clientes portugueses”, admite.

Como admite alguma carência de know-how neste segmento, “pois os iates são uma área muito específica”, diferente da construção naval tradicional, admite que “temos que trazer algum know-how lá de fora, alguém que saiba, e depois fazermos a transferência de conhecimento”. Neste momento, já existe uma parceria com holandeses para este efeito.

Ainda com o segmento dos iates em perspectiva, Bruno Costa refere que a empresa tem outro projecto, para o qual serão criadas instalações separadas das actuais. “Trata-se da construção de embarcações ASV, ou air supported vessels, de 16 metros, em carbono, com um casco especial, que permite criar uma almofada de ar e que diminui os consumos em 50%”, explicou. O objectivo é o sector militar, mas o casco pode ser aproveitado para a náutica de recreio.

Bruno Costa confirmou igualmente que a empresa está a estudar a possibilidade de ficar com um estaleiro em Lisboa, que faz reparação pesada, mas também em embarcações de recreio. “Temos que nos posicionar aqui, Lisboa é muito atractiva, com uma procura muito maior, e a Figueira da Foz está longe”, reconhece.

Mas não são só a vocação náutica e a tradição naval que tornam os portugueses conhecidos no estrageiro em matéria marítima. As condições de navegação e as paisagens também. Mas também aí, as regras e, nalguns casos, as infra-estruturas, não ajudam. Num diagnóstico feito em 2015 e mencionado pelo então Secretário de Estado das Pescas, Manuel Pinto Abreu, num seminário sobre náutica de recreio, aludia-se ao facto de velejadores não pararem em Portugal por falta de pontos de interesse.

O problema era, e em muitos casos continua a ser, o da falta de condições de acesso à água, balizagem e abrigo, que condicionavam a navegabilidade, a rede insuficiente de marinas e portos de recreio, os custos elevados dos serviços náuticos, reduzido desenvolvimento de produtos turísticos associados à náutica, pouca promoção da náutica no exterior e, naturalmente, o complexo e adverso enquadramento legislativo da matéria.

Se é certo que algumas situações evoluíram, também o é que outras não. João Mendonça, por exemplo, com um negócio de passeios no Tejo baseado em Lisboa há alguns anos, só agora pensa apostar na exploração do Sado, que admite ter enorme potencial. O problema têm sido fortes limitações que tem encontrado, designadamente administrativas. Segundo referiu, também esteve ligado à construção de “um barco para ir de Lisboa a Alcochete, e não consigo ir”, por falta de dragagens no rio. Há quem refira a questão do preço ou ainda a questão das lamas tóxicas, que explicam porque não se fazem essas dragagens. “Podemos preparar melhor alguns locais para a náutica de recreio, e não falo só do Tejo, penso, também por exemplo no Sado”, esclareceu.

A propósito da promoção, João Mendonça referiu que têm sido sobretudo os empresários a construir no estrangeiro a imagem possível de Portugal como destino náutico e de Lisboa como destino de eleição. E que depois esbarra nas dificuldades burocráticas. O preço é outro factor de competitividade, mas neste caso, com uma particularidade. Um preço económico pode ser contraproducente num mercado em que os clientes encaram isso como um mau indício relativamente ao produto. Hugo Henriques recordou, a propósito, o que lhe disse um cliente: “não sejam os mais baratos, sejam os melhores”.

A capacidade para a organização de eventos náuticos é outro factor que pode trazer benefícios ao sector. “A Volvo Ocean Race (VOR) e outros eventos do género permitem chegar a muita gente e levam muita gente para o mar”, refere Rodrigo Moreira Rato, ligado à organização do escala lisboeta da anterior e da próxima edição da prova. E confirmou que é crescente o número de visitantes estrangeiros que vêm a Lisboa também para conhecer o boatyard da prova, designadamente, chilenos, argentinos, brasileiros, australianos, neo-zelandeses e holandeses.

Além disso, várias empresas fornecedoras de produtos e serviços náuticos beneficiam com a presença da prova em Lisboa. Rodrigo Moreira Rato revelou que “o impacto económico do boatyard da próxima edição da prova, localizado em Lisboa, e que estava inicialmente projectado para 1,5 milhões de euros, já foi largamente ultrapassado”. Revelou igualmente que o retorno mediático já ultrapassava “um valor superior a um milhão de euros em Portugal”. O mesmo responsável admitiu que Lisboa terá um stopover na edição deste ano, tal como na anterior, mas não quis adiantar o nome da empresa responsável pelo evento.

Na audiência, no entanto, não faltou quem questionasse este responsável sobre alternativas económicas à VOR. “E se o dinheiro aplicado cá para recebermos a prova fosse aplicado na organização de regatas mais pequenas, ao longo de todo o ano, isso não teria mais efeito ?”, perguntou um espectador. Rodrigo Moreira Rato admitiu que existem pessoas que não apreciam a prova, mas que “existem países que até pagariam só para receber o boatyard”, seduzidos pelo prestígio e impacto económico gerados.

 

Autarquias e marinas

A passagem da tutela das marinas para as autarquias é outro tópico gerador de alguma desconfiança entre os empresários da náutica de recreio. Hugo Henriques tem “medo, muito medo”. Para o empresário, existe algum receio de que se vá perder alguma organização ao nível do país sobre o que se vai fazer ou não.

Já Pedro Vale, que reconheceu não ter experiência nem opinião formada sobre gestão de marinas, admitiu que as autarquias são um exemplo de burocracia, pelo que “considerando o pouco conhecimento de marinas também pelas autarquias, associado à burocracia que as caracteriza”, o empresário não antevê vantagens na medida.

José Pedro Henriques, como bom liberal, entende que o Estado só deve agir em certas áreas. Noutras, deve ser a iniciativa privada a operar. No caso das marinas, e tomando a marina do Parque das Nações como exemplo, “entregue à Secretaria de Estado do Tesouro, abandonada e a necessitar de uma intervenção”, o consultor não antevê nada de positivo e receia que sob a tutela autárquica suceda o mesmo que com casos das marinas sob tutela da Administração do Porto de Lisboa, que “nunca criou competências em náutica de recreio”. Para o consultor, “deve haver um concurso e que seja aprovada a melhor solução”, acrescentando que “uma solução privada e transparente é preferível”.

João Pedro Mendonça considerou que não sabe se a mudança de tutela das marinas do porto de Lisboa para a Câmara Municipal é positiva, mas deixou uma questão: “o que percebe a autarquia de marinas?”

Bruno Costa antevê que aquilo que aí venha “vá ser complicado, não se avizinhando nada de bom nas marinas”.

Já Rodrigo Moreira Rato admitiu que no âmbito do turismo náutico possa existir alguma visão das autarquias para este fim. E considerou que “o novo Director-Geral de Políticas do Mar é uma pessoa bem orientada, bem informada e com uma visão clara do negócio”. Se ele “transmitir algumas linhas orientadoras, pode ser que resulte algum benefício dessa mudança”, concluiu.

 

Intervenção de encerramento polémica

O seminário terminou com uma intervenção extra-painel, a cargo de Eduardo de Almeida Faria, consultor e membro da Confraria Marítima de Portugal, que se mostrou crítico sobre o rumo da náutica de recreio em Portugal, apesar do universo de oportunidades que entende que se lhe deparam.

Para Eduardo de Almeida Faria, em primeiro lugar, “o sector não sabe o que quer nem para onde vai”. Segundo afirmou, “cada um chuta para seu lado e não actuamos de uma forma coordenada e concertada e em que assistimos a um enorme desperdício de recursos e de tempo com resultados virtualmente nulos”.

Pelo que a solução passa por uma acção conjugada que passe pela criação de um “Plano Nacional de Desenvolvimento de Náutica de Recreio que nos indique onde queremos estar daqui a 5 anos e daqui a 10 anos, no quadro mais geral da Estratégia Nacional para o Mar”, pela “criação de um organismo que seja capaz de unificar as múltiplas tutelas que atualmente existem” e por colher os benefícios “dos milhares de embarcações que passam ao largo” da nossa costa anualmente, mas que não nos procuram por diversas razões, uma das quais é a “falta de promoção externa de Portugal como destino internacional de náutica”.

Em segundo lugar, o mesmo orador considerou que “o sector está refém de interesses perfeitamente identificados e muito localizados que têm impedido, nomeadamente, a Revisão do Regulamento da Náutica de Recreio ao longo da última década com histórias pelo meio verdadeiramente rocambolescas”. Neste ponto, o orador colheu críticas de parte da audiência, que não aceitou como válidas algumas considerações proferidas durante a sua intervenção.

Em terceiro e último lugar, Eduardo de Almeida Faria considerou que “os decisores políticos não só não percebem o potencial económico da náutica, como também não percebem o seu valor instrumental para atrair as populações para os planos de água costeiros e interiores e assim criar massa crítica para que se possa falar de economia do mar em Portugal”.

 



Um comentário em “Deixem-nos navegar”

  1. António Jorge Ferreira Luz diz:

    A náutica de recreio esta a desaparecer a olhos vistos daqui a poucos anos iremos
    ver as marinas clubes navais sem movimento irá desaparecer a maior parte das
    embarcações . Pelo que se vê muitos fora aqueles que registaram as suas embarcações em outros países e outros estarão a pensar em fazer o mesmo ou
    simplesmente a desistir assim como eu estou pensando muito seriamente neste
    assunto a maquina borocrática é muito complicada .

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