Os poetas a cantar são ecos da voz do mar

Uma das fases elencadas para o desenvolvimento de uma Economia do Mar é cultural (SAER, 2009) e (UERN, 2011). É necessário considerar o mar culturalmente, isto é, como modo de vida e como interpretação da nossa vida portuguesa. É neste sentido, e através de poetas portugueses, que tencionamos também aqui uma aproximação ao mar.

Portugal constituiu uma relação com o mar de modo profundo, a nível social, económico, financeiro, estratégico, histórico e cultural. Como exemplo da nossa profundidade histórica com o mar consideremos que a mais antiga Marinha de Guerra do mundo em funções, registando o início de suas batalhas navais desde 1180, é a portuguesa. No aspeto cultural «Portugal e o mar são gémeos na Terra e na História. (…) É uma verdade palmar, espiritual e telúrica. A partir dela se define o nosso velho povo radicalmente atlântico.» Vitorino Nemésio (Cultura Popular e Turismo, 1953), e, no registo da prosa-poética de Luís Miguel Nava permanece o mesmo sentido: «(…) O mar, bata ele onde bater, é uma decalcomania que não podemos arrancar sem que atrás fique o nosso próprio corpo em carne viva.» (& Etc, 1984). De facto, desde os primeiros trovadores galaico-portugueses, as referências ao mar são inúmeras na poesia portuguesa. Assim é. Contudo, verifiquemos que o mar não é somente um referido, mas ressoa como poema, o mar na poesia portuguesa é também metáfora do poema:

Mar!

E é um aberto poema que ressoa (…)

Miguel Torga (D. Quixote, 2011-1968)

Ou,

Considero o poema o mar,

(…) que me obriga

a ranger como uma arte

os meus ossos de poeta (…)

Fiama Hasse Pais Brandão (Assírio & Alvim, 2006)

 

Ou então,

(…) os poetas a cantar
São echos da voz do mar!

António Botto (Presença, 1999-1941)

O mar é o

Poema sem sossego e sem remate,

Harpejo horizontal do coração do mundo,

Há quantos anos já te recito

Obsessivamente

A medir cada verso

Em cada onda! (…).

Miguel Torga (D. Quixote, 2011-1985)

 

A maré no seu ir e vir é o ritmo do verso:

 

A maré alta sete vezes cresce

Sete vezes decresce o seu inchar

E a métrica de um verso a determina (…)

Sophia de Mello Breyner Andresen (Caminho, 2004-1997)

 

Confunde-se com o objeto pleno da intenção poética:

(…) Poeta apenas, e desejei apenas

Beber o mar num verso (…)

Fiama Hasse Pais Brandão (Relógio d’Água, 1995)

Concentremo-nos em Miguel Torga. O mar em seu rumor musical é um provocador estético capaz de propiciar o poema:

Rumor das ondas, música salgada,

Eterna sinfonia

Da energia

Inquieta:

Que búzio te ressoa a nostalgia,

Além do meu ouvido de poeta?

Miguel Torga (D. Quixote, 2011-1966)

A noção de mar-poema é central, pode fundar o poema:

Nasce o poema como nasce a onda

(Tem o mar da emoção a mesma angústia

Salgada.) (…)

A humana inquietação realizada

É uma onda constante.

Miguel Torga (Coimbra Editora, 1948)

 

E em tudo quanto o poeta segrega fica o mar:

Versos, imagens e melancolia.

Disto faço o casulo do meu sonho.

(…) E na baba que babo fica o mar,

E, no som que ali deixo, o meu lamento.

Miguel Torga (D. Quixote, 2011-1943)

Nostalgia e lamento em consequência do mar não caber no poema, pois não há forma para captar caraterísticas estéticas inefáveis:

(…) Não cabes no teu nome, búzio aberto

E transbordas em ondas,

Da terra, a olhar-te,

Embebedam-se os olhos

Dos poetas.

Mas excedes, também, os versos do seu canto.(…)

Miguel Torga (D. Quixote, 2011-1963)

No entanto, levantado o poeta por esse transbordar do mar pelo poema e ainda mais além do poema, conhecemos os limites humanos da morte e da vida. O mar,

(…) Espumoso como um vinho singular

Salgado e azul,

Só bebido por náufragos

E nascituros (…)

Miguel Torga (D. Quixote, 2011-1963)

 

 



Um comentário em “Da Poética dos Mares”

  1. António Rebelo Duarte diz:

    parabéns pelo sentido estético e aplauso pela temática escolhida

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