Duas semanas antes da Marcha pelo Clima, eurodeputado do MPT - Partido da Terra organizou um debate com projecção de documentário de uma produtora norte-americana sobre a prospecção de hidrocarbonetos no sul de Portugal
Hidrocarbonetos

No último Sábado, realizaram-se manifestações em Lisboa, Porto e Aljezur no âmbito da Marcha Mundial Pelo Clima, lançada pelo “People’s Climate Movement”, dos Estados Unidos, na sequência da agenda energética da Administração Trump, que retoma os projectos do oleoduto de Dakota (Dakota Access Pipeline) e do gasoduto Keystone XL, suspensos pela Administração Obama.

Em Portugal, num manifesto apelando à participação nas manifestações subscrito por diversas organizações, maioritariamente ambientalistas, acusou-se o Governo português de passar “mensagens contraditórias”. Ali se recordou que “em Novembro de 2016, em Marraquexe, na COP22, o Primeiro-Ministro António Costa declarou que Portugal seria carbono neutro em 2050”, para lembrar em seguida que “dois meses depois, o mesmo Governo deu licença à GALP/ENI para avançar com a prospecção de gás e de petróleo no mar de Aljezur, ignorando as mais de 42 mil pessoas que se manifestaram contra o furo, durante a consulta pública”.

No mesmo manifesto, reconheceu-se que “o Governo cancelou dois contratos da Portfuel no Algarve, mas mantêm-se 13 outras concessões petrolíferas em Portugal”, e apelou-se ao “anulamento imediato de todas as concessões de prospecção e exploração de gás e de petróleo ao longo da costa portuguesa, do Algarve à Beira Litoral, do Oeste à Costa Alentejana”, baseadas “numa lei inválida”.

 

Um documentário por concluir

 

Cerca de duas emanas antes destas manifestações, a exploração de petróleo e gás na costa portuguesa foi tema de um debate organizado em Lisboa pelo eurodeputado José Inácio Faria, do Partido da Terra – MPT, que está integrado no Partido Popular Europeu, tal como o PSD e o CDS-PP. O mote para o debate foi dado pela apresentação prévia de alguns minutos do documentário “Oilgarve – Fossil Fuel Controversy in Southern Portugal”, produzido pela estação televisiva texana Issue TV, identificada como não tendo fins lucrativos e estando “dedicada especialmente a projectos sociais e ambientais em todo o mundo”, e realizado por Sophie Rousmaniere, que esteve presente.

O documentário começou a ser produzido no Verão de 2016 e deverá estar concluído em Junho deste ano. Nos poucos minutos visionados, destacaram-se os depoimentos recolhidos pelos autores junto do presidente da Câmara Municipal de Aljezur, José Amarelinho, e de um representante do NERA – Associação Empresarial da Região do Algarve, ambos contra a exploração de hidrocarbonetos na região, entre outros testemunhos, incluindo o de uma activista pelas causas ambientais.

No depoimento à realizadora, referindo-se aos contratos de concessão para prospecção e exploração de hidrocarbonetos assinados com o Governo português, José Amarelinho considerou que “a distinção entre prospecção e exploração é uma falácia”, manteve que não tem dúvidas “de que os contratos terão que ser anulados” e defendeu que “o turismo não casa com a exploração de hidrocarbonetos”.

Já o representante da associação empresarial algarvia, no seu depoimento à estação norte-americana, considerou todo o processo “pouco transparente, pouco sério e cheio de irregularidades”. Embora tenha reconhecido a importância do petróleo ao longo do último século, o mesmo responsável referiu que “neste momento está em causa um debate sobre os tipos de energia” e fez a defesa da paisagem do Algarve “contra os experimentalismos, num momento em que o petróleo está em queda”. Mostrou-se certo de que não existirá exploração de combustíveis fósseis na região e adiantou que “se os responsáveis políticos cometerem esse erro, nunca mais entram no Algarve”.

Numa introdução ao debate, moderado pelo jornalista Ricardo Garcia, José Inácio Faria, que admitiu estar na política por causa de Gonçalo Ribeiro Telles, fundador do seu partido, referiu que no Algarve foi a comunidade britânica a primeira a manifestar preocupações com a exploração de hidrocarbonetos na região. “Em 2015 recebi um e-mail de um cidadão inglês de Aljezur que me pedia ajuda porque estavam a fazer um furo”, referiu o eurodeputado, eventualmente por fracking, para exploração petrolífera.

O fracking, também designado por fractura hidráulica ou estímulo hidráulico, é um método de perfuração do subsolo que permite dali extrair combustíveis líquidos e gasosos. Consiste numa perfuração vertical, seguida de rotação da broca, perfuração até uma profundidade de 2 a 3 mil metros e injecção a alta pressão de um composto de água e substâncias químicas, visando aumentar as fissuras do terreno e assim permitir a saída de recursos, como petróleo ou gás natural, à superfície.

Os defensores deste método justificam-no com a sobreposição das vantagens, essencialmente económicas, aos riscos. Os detractores alegam que o sistema tem elevado impacto ambiental, designadamente, por contaminação de aquíferos, consumo de água, migração de substâncias poluentes para a superfície, risco sísmico, entre outros. Alegam igualmente conhecimento insuficiente do método e pouca regulamentação da matéria.

 

“Foi tudo legal”

 

A irregularidade do processo de atribuição de concessões mencionada no documentário foi contestada no debate por Carlos Caxaria, do Colégio de Geologia e Minas da Ordem dos Engenheiros, que falou a título pessoal, sem aceitar comprometer a instituição de que é membro. Segundo referiu este orador, que presidiu ao júri que atribuiu as concessões no Algarve, no início dos anos 2000, “foi tudo legal”. “Foi um concurso internacional, que resultou de uma opção política”, acrescentou. E esclareceu também que, de acordo com o contratualizado, “se encontrarem alguma coisa, os promotores têm o direito de explorar”.

Uma tese que tem sido questionada com o argumento de que o Governo português terá garantido que os procedimentos seriam apenas destinados a fazer um mapeamento e que nada seria levantado do solo.

O que coloca outra questão, também abordada no debate, que é a do conhecimento. Carlos Caxaria defendeu que “para o Estado, prospecção significa conhecimento, do potencial, da geologia, e o Estado não dinheiro para a fazer sozinho”, pelo que recorre a privados. O mesmo orador recordou a propósito que Portugal “tem uma factura energética que paga como resultado da importação” e não lhe repugna que o país diminua essa factura, com isso justificando que talvez valha a pena conhecer os recursos de que dispomos, porque Portugal não é um país rico.

Uma perspectiva diferente foi defendida por João Camargo, outro dos oradores do painel, membro do Bloco de Esquerda e do Climaximo, um grupo de “activistas movidos pela urgência do combate às alterações climáticas e os seus graves efeitos”, conforme se refere no seu site. “Saber o que temos não interessa para nada”, referiu, categoricamente. “Sabemos o que é que produz a queima de combustíveis fósseis”, ou seja, “não haver mudanças na linha do acordo de Paris, falhar uma janela de oportunidade para essa mudança”, argumentou.

O conhecimento é importante, na opinião de Lisete Epifâneo, do Colégio de Engenharia da Ordem dos Engenheiros, e outra oradora do debate, que falou em nome meramente pessoal. “Há falta de aplicação de instrumentos para termos conhecimento sobre este processo”, referiu, a propósito do processo de atribuição de concessões. “Faz falta perceber de forma clara tudo o que está em cima da mesa, sinto falta de dados”, sublinhou, admitindo que possam não estar disponíveis por falta de estudos ou ocultação por parte de algum interessado.

 

Alternativas ao petróleo: sim ou não?

 

José Kullberg, geólogo e também membro do painel, preferiu manifestar a sua incompreensão pela prospecção no Algarve. No caso do recurso ao fracking, referiu que “as unidades geológicas que estão a ser prospectadas, quer no Algarve, quer noutros pontos do país, são rochas metamórficas, que já passaram muito acima dos 250º, portanto, não é possível extrair de lá qualquer tipo de matéria-prima combustível útil”. “Nem percebo porque é que alguma vez foi posta a concessão pela Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis”, acrescentou.

O geólogo recordou que é uma perda de dinheiro e é penalizador para a natureza. Mas admitiu que se pode dar o caso de os investidores “depois venderem uma ilusão de que aquilo é prospectável a terceiros”.

A propósito do recurso aos métodos tradicionais de prospecção, notou que “há possibilidade de termos reservas interessantes de hidrocarbonetos” e que no Algarve poderão haver áreas exploráveis, “não a 12 quilómetros de distância da costa, mas a cerca de 40 quilómetros da linha de costa” e a 2.500 metros de profundidade.

Outra preocupação manifestada pelo geólogo é a do efeito da pesquisa por energias alternativas ao petróleo. “Quando substituímos o petróleo por outras fontes de energia, estamos simplesmente a trocar a origem da fonte de energia”, afirmou. E comparou a exploração de minas a céu aberto com os furos para exploração petrolífera, admitindo que a primeira tem um ratio mais prejudicial do que os segundos entre energia consumida e aquela que vamos de facto utilizar.

E teme que “se formos tocar nos oceanos, como alternativa aos combustíveis fósseis, as alterações climáticas possam ser ainda mais drásticas” do que as que queremos evitar. “Se vamos mudar, em 20 anos, a economia do carbono, acho que vamos modificar o planeta de uma forma que não esperamos”, acrescentou José Kullberg.

Luís Vicente, biólogo e membro do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, incluído no painel, considerou que a nossa plataforma é instável e tem riscos de sismo e maremotos, pelo que reconheceu riscos à prospecção, à implementação e à exploração de hidrocarbonetos em Portugal.

A bióloga Paula Sobral, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, também no painel, reconheceu que os hidrocarbonetos são poluentes degradáveis, sem o mesmo risco que outros poluentes, “mas com riscos”, designadamente, no caso de um derrame de petróleo, que gera impacto, com oxidação do que não é absorvido, intoxicação de espécies (embora estas possam recuperar ao fim de décadas), entre outros efeitos. No entanto, fez questão de condenar a exploração de petróleo na costa portuguesa, “até porque o petróleo não tem futuro”, afirmou.

Menos peremptório do que a bióloga, Francisco Ferreira, da ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, também entre os oradores, ainda concedeu alguma utilidade ao petróleo, respondendo a uma provocação do moderador sobre se Portugal pode viver sem esse produto com um “não”. “Por isso é que se fala em transição”, referiu, acrescentando que “essa transição está em linha com objectivos do Acordo de Paris”.

Francisco Ferreira também admitiu que “ainda vamos precisar de um bocadinho de petróleo em 2050”, sublinhando que o problema está nos transportes. Defende uma sociedade mais electrificada e a comercialização exclusiva de veículos eléctricos a partir de 2030. “Um tema que está em debate em países europeus”, admitiu. “Depois, teremos mais 10, 15 ou 20 anos até que todo o parque automóvel esteja electrificado”, reconheceu.

O mesmo responsável considerou que existe “uma esquizofrenia entre essa ideia de iniciarmos a prospecção de petróleo, ao mesmo tempo que fazemos planos para a descarbonização”. E que é “contra tudo aquilo que o Governo anda a dizer a propósito das razões pelas quais somos famosos lá fora, como o compromisso para 2050 e os 4 dias e meio de electricidade consumida a partir de energias renováveis durante 2016”, recordou.

Os transportes são o universo de João Vieira, da Federação Europeia dos Transportes e Ambiente, igualmente presente no painel. Este responsável considerou que “é preciso incentivar as pessoas a mudarem de energia e isso é possível, há tecnologia para isso, haja vontade política” e admitiu que têm vindo a ser tomadas medidas em prol da descarbonização da economia, mas que “os transportes são um dos sectores mais atrasados nessa matéria, em particular o transporte aéreo e o marítimo, que estão dependentes do petróleo”.

João Vieira defendeu que “é importante que o gasóleo tenha um preço elevado nos postos de abastecimento para incentivar os consumidores a alternativas, que já existem”, mas considerou que “não é possível nem desejável substituir todo o parque automóvel por veículos eléctricos”, Segundo afirmou, “devemos é modificar comportamentos e evitar alguma irracionalidade, como termos todos um carro ou utilizar um carro para nos deslocarmos poucos metros”.

Ao falar de paradigma energético, João Camargo considerou que “não estamos a falar de uma redução de conforto, mas sim de uma redução catastrófica da população e isso não é um cenário com o qual nos queiramos defrontar”. Para o activista, “não basta dizer o que não queremos, é preciso dizer o que queremos” e sublinhou que “temos que falar em reduções do consumo e do nível devida que temos hoje”.

Luís Vicente, por seu lado, considerou que “temos que reaprender a viver e reformular o processo económico”. À expressão desenvolvimento sustentável contrapõe a de relacionamento sustentável entre as comunidades humanas e a natureza, “que tem um significado diferente”, assumiu. Considerando também que “vivemos um mundo pornograficamente desigual”, apelou à mudança e à mobilização das populações nesse sentido.

 

O papel das populações

 

O papel das populações foi precisamente o objecto da intervenção de outra das oradoras. Ana Delicado, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, afirmou que em Portugal, “as pessoas estão preocupadas com as alterações climáticas, num nível superior à média”. E questionou a aplicação da expressão nimby (not in my backyard) ao caso português, porque no nosso país “houve uma coligação de populações, associações ambientalistas, municípios locais e cientistas numa questão que ultrapassou o Algarve.

“O nimby é um rótulo inventado por aqueles que querem produzir algo que tem algum impacto e assim querem desvalorizar as críticas, acusando os críticos de egoísmo”, referiu. “No nosso caso, houve uma adesão maior do local, até internacional”, referiu, acrescentando que a consulta pública “foi massivamente participada”, envolvendo cartas de milhares de cidadãos”.

A investigadora, todavia, achou “interessante que os mesmos autarcas que durante anos não se preocuparam com outras coisas”, designadamente as questões de urbanização, que também têm impacto ambiental, “venham agora preocupar-se com isto”. “Trata-se de uma coligação virtuosa de interesses”, concluiu.



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