Embora não fosse esperada, a declaração não afasta o cepticismo reinante entre Bruxelas e Pequim nem desmente as contradições europeias face ao papel da China na economia internacional
MAR MOTTO

Contra as expectativas, a União Europeia (UE) e a China assinaram uma declaração conjunta no final da 21ª cimeira bilateral entre a instituição europeia e Pequim, que se realizou no dia 9 de Abril, em Bruxelas. Numa declaração com sete páginas e 24 pontos, as duas partes admitem estreitar a sua parceria económica e comprometem-se a trabalhar conjuntamente para promover uma reforma da Organização Mundial de Comércio (OMC) que inclua o tema dos subsídios industriais, o que é inédito da parte da China.

Na declaração, a China terá cedido em pontos importantes para a UE, como os relativos ao fim das barreiras comerciais e ao investimento, segundo algumas fontes. E de facto, o Primeiro-Ministro chinês, Li Keqiang, admitiu abrir a economia chinesa ao exterior, assegurar um tratamento equitativo para todas as empresas e mesmo concluir um acordo global de investimento com a UE em 2020 que permita melhorar o acesso ao mercado e terminar com práticas prejudiciais para os investidores estrangeiros. Na cimeira foram ainda reassumidos compromissos relativamente à defesa, à cibersegurança e às alterações climáticas.

No final da cimeira, que já tinha começado sob o signo da desconfiança, permaneceu, todavia algum cepticismo. Até porque, como sublinharam alguns observadores, nalguns aspectos considerados importantes, os compromissos assumidos são pouco mais que vagos, como por exemplo a propósito dos subsídios industriais na reforma da OMC, que não é concretizado nem em conteúdo nem em prazos.

Uma desconfiança que é mais acentuada do lado europeu, mais fragilizado com a falta de compromissos do que a China, mas que oculta acordos bilaterais entre diversos Estados membros, como a Grécia, a Itália, a França ou a Alemanha, e Pequim, alguns dos quais em contraste com os riscos dessas relações comerciais que a própria UE identifica e tem enunciado publicamente, como o da tomada de posições estratégicas das empresas chinesas, maioritariamente estatais, em empresas europeias e do grau de influência e controlo que isso confere ao Estado chinês.

De facto, em 2018, a China foi o principal mercado de importação para a UE, num total de 394 mil milhões de euros, e foi o segundo maior destino das exportações da UE, num total de 210 mil milhões de euros, segundo o Eurostat, o departamento de estatísticas da UE, citado pelo pela LUSA e o Diário de Notícias. Já a Euronews, citando igualmente o Eurostat, refere que “o bloco europeu exporta para o mercado chinês 198 mil milhões de euros por ano, enquanto a China exporta 375 mil milhões para o mercado único europeu”. Uma coisa é certa: a balança comercial entre os dois blocos é desfavorável para a UE, como bem lembra a Euronews.

A Grécia e as contradições europeias

A Grécia, nos últimos anos, e a Itália, mais recentemente, são dois exemplos das contradições em que assenta a desconfiança oficial da UE relativamente ao papel da China na economia europeia. Em ambos os casos, os Governos ostensivamente defendem boas relações com a China e criticam a posição dúbia dos seus parceiros europeus, como o demonstram as declarações do Vice Primeiro-Ministro grego, Yannis Dragasakis, ao jornal de Hong-Kong South China Morning Post, dois dias antes da cimeira UE/China, e a recente entrada da Itália no mapa da iniciativa chinesa «Uma Faixa, Uma Rota» (conhecida por One Belt, One Road), que procura unir comercialmente o Extremo Oriente à Europa, Ásia Central, Médio Oriente e África por terra e mar, através da antiga Rota da Seda.

Em entrevista ao South China Morning Post, Dragasakis defendeu as melhores relações comerciais com a China, que interessam a todos e à Grécia em particular, que precisa desesperadamente de investimento. E criticou a França e a Alemanha por tratarem a China como um rival geo-político ao mesmo tempo que assinam acordos com Pequim. Uma crítica indirecta também ao facto de antes da cimeira, o Presidente francês ter convidado a chanceler alemã Angela Merkl e o Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, para um encontro em Paris com o Presidente chinês, Xi Jinping, onde os quatro terão reafirmado a cooperação económica entre o bloco europeu e Pequim.

Mas outra coisa não poderia dizer Dragasakis, nem outra coisa mereceria ouvir a UE. Afinal, a Grécia, classificada como a segunda economia menos competitiva da UE, segundo dados do Fórum Económico Mundial 2018, faz parte da iniciativa «Uma Faixa, Uma Rota» desde 2018, depois de anos a depender da China para ultrapassar a sua própria crise financeira. Uma crise que a UE, através da Comissão Europeia, também procurou combater, concedendo crédito a Atenas, juntamente com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Central Europeu (BCE), mas sob condições draconianas que tiveram consequências políticas radicais no panorama político grego e possivelmente afastaram a população grega do ideal europeu por muitos anos.

E foi no quadro dessas medidas impostas pelas instituições credoras internacionais, dominadas pelos Estados Unidos e a Europa, críticos da influência chinesa, que em 2016 a Grécia vendeu 51% do seu porto do Pireu, porventura o mais importante do país, à empresa pública chinesa Cosco, com opção de compra de mais 16% no prazo de cinco anos. Um porto que a China se apressou a converter numa porta de entrada da sua mercadoria na Europa e também da que segue para o Norte de África.

Mas há mais indícios demonstrativos da ostensiva aproximação da Grécia à China. Em 2016, Atenas ajudou a travar uma declaração da UE contra a estratégia agressiva de Pequim no Mar do Sul da China. No ano seguinte, bloqueou uma declaração conjunta da UE contra a violação de direitos humanos pela China, poucos dias antes de se ter oposto a uma monitorização mais detalhada dos investimentos de Pequim na Europa. Uma aproximação que ocorre desde que o partido Siriza, considerado da esquerda radical, assumiu o Governo da Grécia, na sequência da crise que levou a resgate financeiro do país.

«Uma Faixa, Uma Rota», um projecto gigante

Para se ter uma noção dos motivos pelos quais a Europa e os Estados Unidos receiam o impacto da iniciativa «Uma Faixa, Uma Rota», não basta referir os exemplos dos problemas financeiros de Estados em dificuldades, como a Grécia ou o Sri Lanka (onde a China, face à impossibilidade de ver paga a dívida que aquele Estado tinha para consigo, tomou conta do porto de Hambatota por 99 anos), entre outros, onde Pequim assume o controlo de activos a troco de perdões financeiros ou da concessão de facilidades económicas. Nem basta reconhecer a crescente presença militar chinesa no Mar do Sul da China, onde esgrime a política do facto consumado nas disputas territoriais que ali opõem vários Estados da região.

Importa igualmente verificar a dimensão do projecto «Uma Faixa, Uma Rota». Cinco anos depois de ter arrancado com esta iniciativa, a China divulgou dados estatísticos sobre a mesma. Independentemente da origem interessada dos dados, logo, discutível, os números não deixam de revelar a escala ciclópica do projecto, ao qual já se terão junto cerca de 60 países, incluindo a Nova Zelândia, a Áustria, o Cazaquistão, a África do Sul, a Grécia e a Itália, o primeiro Estado do G7 a fazê-lo.

No final de 2018, segundo estes dados, no contexto deste projecto, a China tinha assinado 170 documentos inter-governamentais de cooperação com 122 Estados e 29 organizações internacionais. E em Abril desse mesmo ano, já se tinham formado 1.023 pares de cidades geminadas entre a China e 61 países ao longo do trajecto abrangido pela iniciativa, o que correspondia então a 40% do número total de cidades geminadas da China com localidades de outros países.

Por outro lado, entre 2013 e 2018, o comércio entre a China e os países do projecto ascendeu a 6,47 triliões de dólares (5,7 triliões de euros), mais de 80 zonas de cooperação económica e comercial tinham sido instaladas fora da China e tinham sido criados mais de 244 mil empregos locais no estrangeiro. No mesmo período, o investimento directo chinês em países do projecto ultrapassava os 80 mil milhões de dólares (71 mil milhões de euros).



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