«No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Deus disse: "Faça-se a luz!" E a luz foi feita»…

As primeiras palavras do Génesis têm gerado, como se sabe, ao longo dos séculos, as mais amplas e acesas discussões teológicas. Afinal, foi a criação ex nihilo ou comportou-se Deus apenas como uma espécie de taumaturgo, dando forma a uma matéria já pré-existente?…

Entre essas e muitas outras questões mais, entretanto suscitadas, nenhuma nos cumpre aqui dilucidar ou decidir, falecendo-nos para tal quer tanto a correspondente ciência como a devida arte ou, até mesmo, quem sabe, a necessária inspiração.

Todavia, o que parece certo é que, se colocarmos «Oceanos» onde na Bíblia encontramos as «águas», como, de certo modo, se afigura legítimo, melhor se compreende talvez até onde é possível recuar na defesa da tese, como muitos defendem, de tudo quanto há e é vivo neste transitório mundo ter a sua mais remota origem nos Oceanos, assim também mais e melhor justificando e valorizando o tão actual conceito de «Capital Natural», mesmo quando sempre seja fácil determinar em que exacta acepção é usado o termo «Capital» na mesma expressão conceptual.

De facto, atendendo a quanto nos dizem os mais eruditos, em quem piamente cremos dada a nossa ignorância filológica, a palavra «Capital» deriva remotamente do latim «caput» que significa «cabeça», daí tendo resultado exactamente expressões como, «pena capital», «pecado capital» ou ainda, por similitude, se designar por Capital a cidade de domínio toda uma nação, assim como se entende dominar a «cabeça» o corpo a que se encontra ligada, como é o caso bem característico de Lisboa em relação a todo o território que ainda designamos hoje como sendo Portugal.

Partindo desse primeiro e mais remoto significado, no transcorrer das idades, em mais recentes dias, Marx, quando em melancólica indagação sobre a possível causa da riqueza dos homens e das nações, determinado a desocultar os mais recônditos segredos da mais moderna crematística, seguindo os rastos dos fumos que começavam então a marcar de nevoenta patine a mais operosa Londres, deparando com o pulular de uma miríade de novas fábricas a desabrocharem como cogumelos em tão denso quanto fértil bosque, , analisando o Balanço dos novos empreendimentos, das novas fábricas, e vendo que, antes de mais e acima de tudo, à cabeça, sempre como primeira linha do mesmo Balanço, se encontrava o investimento financeiro, tudo se lhe revelou e, iluminado por tão assombroso clique mental, na esteira dos velhos banqueiros florentinos e do seu «capiale», logo entendeu aí residir exactamente quanto há tanto tempo já, tanto o acossava, ou seja, a primordial e mais verdadeira causa das causas da riqueza dos homens e das nações, causa também da felicidade dos mesmos homens e das mesmas nações, logo decidindo, em consequência, meter dedos à pena e iniciar a redacção da sua mais capital obra, exactamente intitulada, «O Capital», em que, colocando o referido investimento financeiro, o «capital» ou também mais vulgarmente designado «vil metal», para todo o sempre onde outros viriam a colocar, talvez mais modesta mas talvez não sem mais fértil imaginação, o «sexo», não sem deixar para todo o sempre também uma grande angústia no coração dos homens, não apenas sobre uma eventualmente estreita relação entre um e outro mas igualmente sobre a qual atribuir, de facto, o título de supremo motor do mundo.

Agústia e paralelismo tão mais justificado quanto mais a sociedade Vitoriana não deixaria de vir a colocar em relação ao «sexo» exactamente a mesma pudicícia e horror que as gerações anteriores haviam colocado já em relação ao «capital», ou seja, como um insuportável interdito a não revelar senão o mais decadente estado de corrupção a que podia descer a alma humana, pasto dos mais baixos e degradados e instintos  pós Pecado Original, não surpreendendo já que, ainda hoje, uma vez ouvida tal expressão, não haja quem, mais sensível ou de mais apurada memória, não logo reaja lembrando, ou acusando, de forma veemente, ser o mercado, lugar por excelência de circulação do mesmo «capital», incapaz de pensar a médio e longo prazo, mas apenas tão só e exclusivamente a curto prazo, assim como sucede, exactamente, dir-se-á, indubitavelmente, com todos os homens em relação ao «sexo».

Todos entendemos, com certeza, as mais fundas razões de quanto se pretende dizer com tão veemente acusação, sendo mesmo difícil, nos dias de hoje, de ter ou manifestar simpatia ou mínima compreensão por tão imediata quanto genuína reacção, mesmo quando se percebe haver um problema como seja o pequeno problema de o mercado, de facto, não pensar.

Categoria económica, lugar, por definição, de encontro entre a livre oferta e a livre procura, tendendo sempre para um certo equilíbrio, ou mesmo equilíbrio certo, quando, através do igualmente livre mecanismo de fixação de preços, é possível à oferta escoar toda a sua livre produção e à procura satisfazer, não menos livremente, todas as suas necessidades ou mais simples desejos de aquisição dos bens proporcionados pela mesma oferta. Tão só isso e nada mais do que isso.

Mas, se tão só isso e nada mais do que isso, porquê, interrogar-se-á, chamar à colocação o mercado quando o mercado, nada tendo, aparentemente, a ver com o caso, para nada deveria ser chamado à colação?

Porquê, de facto, tão extemporânea evocação ou mesmo invocação?

Reflectindo um pouco e percebendo como o ataque ao mercado é, habitualmente, apenas o prenúncio e antecâmara de um subsequente ataque, ainda mais violento e decisivo, à Propriedade, seja enquanto forma de Direito, seja enquanto simples categoria económica, as peças parece começarem a conjugar-se.

Na realidade, atendendo a que, a par de tudo quanto referido, de algum modo, um pouco na mesma linha, se encontra sempre a persistência da mitologia, com a correspondente nostalgia, de uma perdida idade de ouro, um tempo anterior ao tempo, aos dias da civilização, longe os malefícios e iniquidades que a mesma civilização sempre fatal e inexoravelmente implica e acarreta, um tempo consagrado ainda à mais simples, pura e idílica vida selvagem, primitiva, por certo, mas feliz, vivendo todos ainda todos em imaculada comunidade de bens, para além, muito para além do bem e do mal, não deixando nunca de fazerem aí sentir os ecos de um Rousseau e do seu mais famoso mito do «bom selvagem», para não se recuar já aos Séc. XVI e XVII quando a mesma mitologia, associada a preceitos de carácter milenarista e religioso, não deixaram de conduzir, sobretudo na Alemanha, com o paradigmático caso dos Anabaptistas, de quem os Amishes são hoje, talvez os mais conhecidos e emblemáticos descendentes, às famosas revoltas camponesas, logo ferozmente reprimidas pelos Príncipes Germânicos, não sem o expresso beneplácito de Lutero, tal como algo semelhante não deixaria ocorrer igualmente em Inglaterra, embora de forma sempre bem mais mitigada, e se, em simultâneo, se atender ainda ao facto de o socialismo em geral e o marxismo, muito em particular, idolatrar e exaltar o nascente industrialismo, uma vez considerar-se possuir todas as virtualidades e capacidades para vir produzir tudo quanto necessário à plena felicidade dos povos, admitindo tal não suceder apenas porque, os mesmos «capitalistas», marcados pela queda e pelo pecado, pelo egoísmo, pelo exclusivo interesse pessoal e sempre ávidos de mais poder e mais riqueza, naquela «dialéctica» que Marx viria a determinar como a perpétua «luta de classes», até ao advento e instauração uma «nova idade» ou «sociedade comunista», onde, abolidas as «classes», verificada a apropriação dos meios de produção pelo povo, produzindo cada um de acordo com as suas capacidades e consumindo de acordo com as suas necessidades, tendo como matriz a plena igualdade de todos, alcançada também por uma igual distribuição de bens por todos, o regresso ao paraíso seria finalmente possível, então começa a ser evidente como, para isso, importava, como importa, destruir, antes de mais, a velha Ciência Económica para erigir e tudo refazer de acordo com uma nova Economia Política, ou seja, abolir as categorias económicas, como o Mercado e, acima de tudo, a Propriedade, logo se chegando também, a seu tempo, ao Dinheiro, sempre mais fácil de manipular e, de algum modo, desde sempre, mesmo por todos mais manipulado, ou seja, de mais fácil, porque também mais subtil, destruição, como sempre vai sucedendo um pouco, de forma a tornar a mesma Ciência Económica impensável sequer.

Com esse fundo ou lastro histórico, após a II Guerra Mundial, com as Beat Generation e mais tarde, sobretudo, nos Anos Sessenta, com o Flower Power, a Geração Hippie, Elvis, o Rock’n’Roll, os Beatles e a redescoberta do Oriente, «onde talvez Deus ainda exista», a recusa e repúdio da sociedade da abundância, assim como da nova idade industrial, quase natural, se assim se pode dizer, a recuperação também de uma nova nostalgia de mais idílicos dias de mais perfeita e completa comunhão com a Mãe Natureza, não deixando de haver também um novo paralelismo entre uma suosta libertação do jugo do «capitalismo» e uma muito real libertação da antiga angústia do «sexo»…

Novos tempos em que os ecos de Rousseau voltavam a pairar, assim, nos casos mais benignos, o Walden, de Henry David Thoreau, uma tradição menos radical, apesar de não deixar de conjugar igualmente tanto uma quase a mesma, mas mais adulta e genuína, exaltação da natureza, a par de uma mesma condenação, não tanto da civilização, mas tão só de um certo industrialismo quando então ainda nascente nos Estados Unidos da América.

Após a II Guerra Mundial, o Mundo já se dividira, porém, em Mundo Ocidental e Cortina de Leste _ onde pontificava, evidentemente, a Santa Madre Rússia transmutada em União Soviética, Pátria do Socialismo, do Universal Comunismo que, um dia, a todos haveria de iluminar.

Por uma daquelas ironias do destino em que o destino é pródigo, sobretudo a partir dos Anos 70/80, percebendo a fraqueza e a ingenuidade de muitos a Ocidente, conseguiu a União Soviética, sendo evidente a sua incapacidadede acompanhar a inovação tecnológica do Ocidente e, por consequência, rivalizar com o respectivo avanço económico, conjugando a mitologia do «bom selvagem» com o mito do socialismo, fazer crer ser o seu atraso querido por maior proximidade à natureza e não por a destruição das categorias económicas estar a conduzir a economia Soviética à inevitável miséria que a estava a conduzir, incentivando e fundando novos movimentos ecologistas e ambientalistas, e mesmo partidos políticos ditos ambientalistas e ecologistas, muitos dos quais despudoradamente até directamente dependentes dos respectivos Partidos Comunistas locais, como sucede ainda hoje em Portugal com Os Verdes, não por quaisquer razões de qualquer ordem realmente ambiental ou ecológica mas tão só para tornar possível gerar, desse modo,  uma necessária e muito estratégica entropia económica a Ocidente como última tentativa de se tornar o fosso entre os dois mundos ainda mais evidente como, acima de tudo, completamente insuportável, como viria a suceder poucos anos mais tarde.

Estratégia inteligente, perdurando ainda hoje o respectivo legado.

Sim, poderia não haver na União Soviética todos os bens de que a decadente e consumista sociedade Ocidental beneficiava já, mas eram todos, ou quase todos, sábios doutores, engenheiros e sabe-se lá que mais, como o Ocidente não sonhava sequer ser possível.

Eram mais pobres, levando, eventualmente até, uma vida mais primitiva? Talvez, mas mais felizes, com certeza _ e tão mais felizes quanto essa pobreza, afinal, mais não fazia do que todos mais aproximar da natureza, numa espécie de igualdade escatológica, percebendo-se perfeitamente, dada a queda do Muro de Berlim, o respeito havido pela Grande Mãe Natureza, tanto na União Soviética como também no farol do desenvolvimento industrial como era a então considerada a República Democrática Alemã.

Simplificamos um pouco?

Talvez, mas não muito, como se vê pela persistência de tais tradições e atitudes em muitos das mais actuantes ONG e movimentos ditos ambientalistas e ecologistas da actualidade, nem sempre se tornando fácil distinguir, para usar uma expressão consagrada, «o que é vivo e é morto» em tais doutrinas, não deixando sequer de fazer apenas sorrir quando, em muitos casos, se levadas realmente a sério e ao limite, algumas das suas mais radicais teses, de forma coerente e consistente, talvez nem à revolução da agricultura dos mais remotos dias da História tivesse sido possível assistir, exactamente por não se ter deixado de colocar em perigo então, como agora, tanto a continuidade de importantes habitats como ficado igualmente em risco a preservação não menos importantes áreas de uma biodiversidade única.

Exagera-se um pouco, talvez, mas sem referir já os casos de todos os estudos sobre estes mesmos temas que, vem-se mais tarde a saber, seja de um lado, seja de outro, sempre excedem em propaganda quanto falta as mais das vezes em seriedade científica, o facto é que essas atitudes, tidas por demasiado fundamentalistas e não sem o seu quê de enviesamento ideológico, não têm ajudado à causa, se assim se pode dizer, não obstante a causa, como quase todos, de um modo ou outro, já terão percebido, ser realmente séria e grave.

Mas como levar a sério quando, na maioria dos casos, logo se percebe na defesa de muitas das mesmas causas, algumas das quais até inegavelmente sérias e graves, haver razões de fundo ideológico que não só tudo inquinam como tudo desvirtuam _ ou mais do que simplesmente inquinar e desvirtuar, não raras vezes, vão mesmo no sentido contrário aos nossos interesses e a quanto há de mais singular em nós?

Ainda recentemente assistimos a um caso típico, como sucedeu com a apresentação do estudo realizado pela Iniciativa Oceanos da Fundação Gulbenkian, dedicado precisamente ao tema, «O Valor do Capital Natural», como aqui demos a devida notícia, em que, independentemente do inegável muito mérito e valor do estudo, o tom de grande maioria dos comentários proferidos ao longo dos vários painéis de discussão do mesmo, seguiu muito de próximo, de forma mais ou menos expressa, mais ou menos subtil, ou mais ou menos mitigada, exactamente como acima descrito.

Para além dos já esperados ataques ao mercado, inevitável preâmbulo do ataque à Propriedade, como referido, quando se assiste igualmente a tudo quanto tem a dizer um Director do Ambiente em Bruxelas, estranhamente Português, a mais não ser senão a afirmação de defesa da patética tese de uma suposta perfeita igualdade entre os povos, mais redobra, evidentemente, a preocupação, não tanto pelo disparate algo infantil do paralogismo em si, «se todos os homens são iguais, sendo todas as nações são constituídas por homens, então todas nações são iguais», mas porque, lá do alto do seu muito lustroso Berlaymont, sendo, tanto para si como para a Comissão, todos os homens iguais e, por consequência, todas as nações iguais, então, a Luz única das suas mais brilhantes e universais Directivas, forçosamente iguais para todos, não poderão deixar de ser igualmente seguidas e observadas por todos, igualmente sem mais.

Singularidade de Portugal?…

Ah!, mas que ideia mais abstrusa!…

Não temos singularidade?

Estamos condenados, de facto, a seguir, sem mais, tudo quanto, seja Bruxelas, seja a ONU, seja lá quem for a quem se atribua relevância internacional, decida ser importante, prioritário, a rapidamente realizar, realmente sem mais?

Porquê esta inconsciência em que persistimos viver, esfumando-se, pouco a pouco mas talvez irremissivelmente, a nossa capacidade de afirmação própria, na Europa e no Mundo?

Que absurdo é este em que persistimos viver?

Fomos nós, Portugueses, quem alguma vez defendeu ser primordial destino do Homem tornar-se «dono e senhor da natureza»?

Fomos nós, Portugueses, quem colocámos toda a esperança no industrialismo e imaginámos um novo mundo de bem-aventurança alcançado por via de uma máxima produtividade e igual distribuição de terrenos bens?

Não somos, pelo contrário, um povo com uma singularíssima relação com a Natureza, mesmo que hoje esquecida e obliterada?

Não somos nós um povo que chegou mesmo a ter quem defendesse ser destino do Homem, não ser dono e senhor da Natureza mas «ajudar a Natureza a ser»? Não somos o povo que teve igualmente quem tivesse elaborado a mais completa conceptualização, até hoje realizada, do que a Propriedade é, seja do ponto de vista do Direito, seja de um ponto de vista Filosófico, seja até enquanto apenas Categoria Económica, daí decorrendo uma igualmente singularíssima visão do mundo, da existência e talvez até do próprio sentido da vida,?

Porque teimamos em ignorar tudo isso?

Não devíamos nós, Portugueses, conscientes da nossa singularidade, com plena consciência disso, saber prosseguir e desenvolver, bem pelo contrário, os nossos próprios estudos sobre o Ambiente sob um ponto de vista estritamente Português, i.e., devida e adequadamente alinhados com os nossos interesses estratégicos, ?

É isso que sucede?

Infelizmente, longe disso.

Hoje, nesse particular, como, em quase tudo o mais, limitamo-nos a seguir terceiros, ignorando olimpicamente quanto seja ou não Português, quanto seja ou não o nosso mais real interesse estratégico.

Hoje, quando tudo importa é a aparência do sucesso, do êxito, seja ele qual for, se, como diria o nosso António E. Cançado, «a atitude mais inteligente a ter na vida para se alcançar o pleno êxito é ser tão mais completamente estúpido quanto seja possível», ou seja, ser, tanto quanto possível, uma maria-vai-com-as-outras, sem mais, então, talvez estejamos, infelizmente,  no caminho certo, embora condenados, quem sabe, independentemente do grande êxito alcançado ou não, a não chegarmos verdadeiramente a lado algum, ou a algum lado, pelo menos, que nos interesse _ se é que ainda nos interessa chegar seja onde for, a não ser, talvez, a um bom «prato de lentilhas», como também dizia já o nosso pobre e muito velho Fialho.



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