Do Cluster ao Complexo da Economia do Mar

Afirmava o nosso velho Leonardo Coimbra ser o mais importante de tudo, a descoberta da palavra certa. Não porque se pense a partir de palavras mas porque, sem palavra, impossível também é todo o pensamento, o mínimo pensamento.

Joseph de Maistre escrevia ser «toda a palavra humana emanação imediata do logos divino», afirmação com a qual não podemos deixar de concordar plenamente, como plenamente não podemos deixar de concordar com o nosso Álvaro Ribeiro quando afirmava ser a língua a «tradição», para quem possa compreender o que tal verdadeiramente significa.

É certo, nos tempos modernos, ter-se retirado às palavras todo o seu significado e, consequentemente, não surpreende muitas conversas, hoje, não passarem já senão de verdadeiras conversas de surdos, sem qualquer significado nem mínima possibilidade de verdadeiro diálogo.

Tudo isso sabemos, como todos bem sabemos e com certeza todos nos lembramos, as afirmações de Toynbee, no que foi seguido por Ortega y Gasset, segundo as quais, estar na génese da decadência do Império Romano, a corrupção da língua.

Vem tudo isto a propósito da muito comum expressão, hoje muito usada na gíria, de «Cluster da Economia do Mar».

«Cluster»? O que é que isso significa?

Não sabemos.

Se usássemos uma expressão como, «Complexo da Economia do Mar», haveria, com certeza, pelo menos, a vantagem de sabermos do que estávamos a falar.

Em português, «complexo» significa sempre, no mínimo, «um conjunto de coisas ligadas por um nexo comum» e, no caso industrial, «um conjunto de instalações ou actividades coordenadas tendo em vista a realização de uma finalidade comum».

«Complexo», um pouco mais complexamente, diz-se também, em português, do que se forma a partir de um núcleo e que, por ligação cada vez mais elaborada com terceiros elementos, acaba por formar um todo a partir desse mesmo desligado conjunto original de elementos, em sistemática interacção ou interligação.

«Cluster» não nos diz nada, não apenas porque não é português como, mesmo em tradução, muito aquém do significado de complexo, nunca além de «grupo» ou «cacho» poderíamos ir porque, na verdade, o que significaria sempre, seria, na melhor das hipóteses, ir a nenhures.

E porque se entende isto como importante?

Porque se falamos em «Cluster da Economia do Mar», falamos apenas em «Cluster da Economia do Mar», numa espécie de quase mero psitacismo sem nada verdadeiramente significar. Se falamos em «Complexo da Economia do Mar», tudo muda.

Em primeiro lugar porque, «Complexo da Economia do Mar», pelo próprio significado da expressão, «Complexo», não pode deixar de despertar a imaginação para um conjunto de actividades eventualmente dispersas mas sempre interligadas por um nexo, imagem que «Cluster» nunca pode despertar, uma vez não ir, no melhor dos casos, para o poliglotas, na nossa língua, além do pouco inspirador «grupo» _ e se em matemática até é legítimo falar em grupos vazios, facilmente se percebe em que buraco logo seremos também capazes de cair.

Mas mais importante e significativo. Se «complexo» é uma expressão que sugere de imediato um núcleo em torno do qual outros elementos se interligam para formar um todo, funcionando como uma espécie de sistema, i.e., em que o que se diz da parte se diz do todo e o que se diz do todo diz-se da parte, então, talvez a expressão, como verdadeira «centelha de luz», nos ilumine e nos faça interrogar: no «Complexo da Economia do Mar» onde está esse núcleo capaz de verdadeiramente agregar o todo?

E não é essa uma questão importante, talvez mesmo a primeira e a mais importante de todas?

O núcleo poderá talvez não ser único. Talvez possa existir mais do que um. Mas que algum núcleo terá de existir, isso parece indiscutível. Será a Náutica de Recreio? Serão os Portos? Outro?

Quem sabe?!…

Talvez não se saiba ou ainda completamente determinado esteja mas, sem determinação desse núcleo, sim, é possível que tenhamos «Cluster da Economia do Mar» mas nunca teremos um «Complexo da Economia do Mar», talvez nunca tenhamos mesmo «Economia do Mar».



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