Durante vinte anos, Karume tinha sido marinheiro e ainda hoje berrava, conta Ryszard Kapuscinski no seu extraordinário Ébano, mesmo quando falava ao ouvido de alguém, e berrava tão alto como se quisesse que a sua voz se ouvisse mais longe do que uma tempestade no alto mar.

Uns bons anos antes, Gilberto Freyre, mestre dos Apipucos, arredores do Recife, Pernambuco, num trabalho muito interessante intitulado A língua portuguesa: aspectos de sua unidade e sua pluralidade nos trópicos, sobre as sonoridades da língua, e mais precisamente entre a particularidade e universalidade do português falado nos trópicos, menciona outros dois estudiosos do assunto, para identificar determinados condicionalismos culturais exercidos sobre o formato das linguagens.

Assim, e ficando por agora apenas nas características geográficas, os aglomerados populacionais densificados, onde as pessoas dividem a sua habitação paredes meias com os seus vizinhos, tendiam a promover um falar quase confessional, feito de sussurros e discursos mínimos. Já por oposição, os habitantes dos aglomerados onde os vizinhos boiam em amplos espaços, desenvolvem um discurso caudaloso, canoro, feito para se entreterem a eles próprios, à falta de interlocutores.

E depois havia a fala dos pescadores, abundante em ões e em ães, sonora o suficiente para se sobrepor ao marulhar das ondas.

Esta língua dos pescadores é naturalmente típica do litoral, e num país como Portugal, onde a presença do mar é quase permanente, foi importante na génese e desenvolvimento da nacionalidade, e acabou por incorporar intimamente a língua portuguesa.

A língua portuguesa podia perfeitamente ter permanecido como mais uma das línguas faladas na Península Ibérica, como o galego, o mirandês, o basco, ou o catalão, filhos menores e pitorescos do latim da romanização, não fosse o facto de na viragem do século XV para o XVI, ter embarcado nos navios com que Portugal foi descobrir de quanto mar é que era feito o horizonte.

Aquela língua forte, porque continuava a ser a língua dos pescadores, ideal para mandar e obedecer a bordo, contudo, naquela altura talvez não chegasse a ser falada por dois milhões de pessoas.

Mas quando as caravelas finalmente regressaram a meio do século XX, tinham deixado mais de 250 milhões de pessoas em todo o planeta a falar português. E nos confins de S.Paulo, beirando o Jardim da Luz, o único museu da língua portuguesa no mundo.

Aconteceu um caso parecido com o espanhol. Mas neste caso o castelhano, que também era apenas mais uma das línguas ibéricas, e também assim podia ter permanecido até hoje. Porém transformou-se na língua falada atualmente por mais de 400 milhões de pessoas, e não tanto por ter sido a língua que uniu Espanha e o matrimónio dos reis católicos, em 1469, mas precisamente porque foi ela que foi embarcada nos navios que começaram a zarpar de Sevilha e de Cádis, à procura do mundo do outro lado.

No entanto uma vez chegados a terras onde ninguém tinha chegado antes, e que incorporaram aos seus domínios, territórios muitas vezes superiores aos seus territórios europeus, aquelas duas línguas, o português e o castelhano, agora tornado espanhol, poderiam ter liricamente fenecido na praia, como aconteceu ao fenício e ao flamengo, língua apenas de marinheiros e mercadores.

Foi preciso desembaraçar a língua portuguesa e espanhola do bojo dos navios, como os restantes artefactos que iam permitir criar vida nova e própria nas terras conseguidas, e depois arrastá-las pelo seu interior adentro, e explicá-la aos nativos, para que estes a entendessem, pelo menos na sua forma de ordens.

Nas Américas, o Novo Mundo por excelência, o espanhol embrenhou-se pela serraria andina, numa alternância de cumes, vales, planaltos, desertos e planícies, tocando tanto a selva como o Pacífico.

E o português teve que deixar os areais de Itapuã, e adentrar o sertão, transpor as Minas Geraes, alcançar o planalto paulista, chegar a Goiás, subir o Amazonas, embrenhar-se na selva, e aproximar-se perigosamente do Rio Grande do Sul, onde a língua espanhola já estava implantada às margens do Rio da Prata.

Quando não ensinámos pacientemente papagaios a falar o vernáculo mais vernáculo da língua, que são os palavrões, ensinámos para sermos servidos, o que por ser verdade não deixa também de ser uma excelente forma de ensino, bastando ver o caso da língua inglesa. Mas também para servir.

Tem-se escrito bastante sobre uma pretensa eficácia da colonização holandesa sobre a portuguesa, tanto no Brasil como no oriente, assente numa tolerância religiosa, que talvez já pressagiasse a Reforma, e onde o Deus a quem se rezava era bem menos importante do que as administrações das companhias coloniais, e onde o catecismo valia menos do que os balancetes comerciais.

Os holandeses talvez tenham efectivamente praticado esta tolerância (ou alheamento ?), mas uma vez mais pagaram-no caro. Com a fluidez da sua língua, cada vez mais gradual, até à dissipação.

Pelo contrário, os portugueses tinham um Deus que era necessário servir, tanto mais que como paga, o Papa, o seu representante na Terra, tinha dividido o mundo em duas metades e oferecido cada uma delas aos portugueses e aos espanhóis.

Beneficiário da dedicação e zelo apostólico dos missionários jesuítas, que dominavam a cultura como talvez ninguém o fizesse melhor naquela altura no mundo, e no caso português, com uma especial inclinação pelas línguas e a artes, ao contrário por exemplo dos jesuítas franceses, mestres da astronomia, da botânica, da mineralogia, o Brasil pela mão de Nóbrega, Anchieta, e Vieira, viu a língua portuguesa misturar-se com as línguas nativas, em salmos, oratórias, ou apenas dicionários, e onde o português aglutinou aquela Babel toda, para se alterar, mas conservar a identidade que vem até hoje, privilégio lógico de quem manda imprimir a palavra falada.

Os holandeses com o seu império ultramarino edificado à maré, quando tiveram por força das circunstâncias históricas e políticas que desmobilizar e regressar às suas terras baixas na Europa, trouxeram consigo o flamengo, já que quase apenas eles o falavam no mundo. O mais que ficou daquela língua foi o Afrikander, uma língua doméstica falada apenas no sul de África, mistura de outras, e que para seu infortúnio ficaria indissociável da ignomínia do apartheide.

Em África, o processo da língua portuguesa foi algo distinto, perturbado pela vilania da escravatura, essa chaga infame que nós praticámos em abundância.

E contudo, a escravatura é indissociável da civilização, tal e qual ela se disseminou entre as margens do Tigre e o Eufrates para originar a nossa cultura. Prática sórdida, passou com os europeus às terras do ultramar, mas apenas em novas formas, já que era em qualquer lado do globo, Américas, África e Ásia, a base de sustentação de qualquer organização, com maior ou menor grau de sofisticação, com um muito especial requinte no oriente.

A escravatura não começou com os portugueses, e prosseguiu muito depois de a termos abolido em 27 de Fevereiro de 1869, e depois de diversas tentativas anteriores mal sucedidas.

Na Etiópia, o pais mais antigo que se conhece de África (a Bíblia, cita-o, e logo no começo de tudo, no Genesis, Capítulo Dois) eternamente o paladino da liberdade e da independência africana, foi um dos únicos três países africanos, juntamente com o Egipto e a Libéria, a integrar a Liga das Nações, a Etiópia, apenas aboliu oficialmente a escravatura em 1942.

Conta-se que na ficha de admissão aos aquartelamentos dos movimentos que lutavam pela independência de Angola, em meados dos anos sessenta e setenta do século passado, havia um questionário onde era necessário registar as línguas faladas, dividido em duas secções; uma para as diversas línguas locais, africanas, e outra para as línguas estrangeiras, onde o nosso português não só aparecia deslocado, mas remetido para os subúrbios, para onde a ordenação alfabética atirava o P.

Contudo, seria em português que a independência seria proclamada, que o hino nacional foi cantado, e que a lei fundadora foi registada.

Atualmente, segundo Eduardo Agualusa, flâneur bantu, a língua portuguesa sobrepôs-se às restantes línguas locais angolanas, de uma forma muito mais premente da que existia durante a governação portuguesa, num processo desinteressante porque pode conduzir à morte daquelas línguas.

Naquele tempo, e por experiência própria, lembro-me de ouvir às primeiras horas da madrugada, na Emissora Oficial, o programa A voz de Angola, ser anunciado aos ouvintes, numa série de línguas, quase tantas quanto a diversidade de povos que constituíam aqueles ouvintes, uma cascata inebriante de sons, e onde o português se portava particularmente bem.

A língua dos pescadores superou em muito os desígnios que lhe foram fixados.

É em português que presentemente quase 300 milhões de pessoas no mundo, trabalham para melhorar o presente, e sobretudo pensam o futuro. Um deles o Secretário Geral da ONU.

Com o dever cumprido, os pescadores, julgo pouco ligarem a estas considerações, embrenhados na sua faina e onde a língua serve essencialmente para se relacionarem nos seus portos de abrigo.

Numa conferência a que assisti sobre assuntos de pesca, ouvi uma estória maravilhosa, que julgo que continue a sê-la, mesmo que não seja inteiramente verdade.

No decorrer de uma das campanhas oceanográficas promovidas pelo Rei D.Carlos, em determinada altura da nossa costa, o iate real deparou-se com uma embarcação de pescadores, a quem por curiosidade do conhecimento das rotas cumpridas naquelas águas, e por dificuldade de identificação da origem da embarcação, fizeram a pergunta:

Vocês são pescadores de Portugal ou de Espanha?

E da embarcação veio a resposta mais precisa e concisa que podia haver.

Nem uma coisa nem outra. Somos da Póvoa do Varzim.



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