Considerações e advertências de Camões

Os Lusíadas, sendo a obra maior da literatura de língua portuguesa, possuem um conteúdo moral e espiritualmente tão rico, profundo e diversificado, que se justifica buscar neles a inspiração e a orientação necessárias para analisar e compreender as questões relativas às principais matérias relacionadas com a identidade nacional e a consciência colectiva dos portugueses. Ora, é neste contexto que se pode colocar o perseverante problema existente em Portugal, país com uma história militar repleta de feitos com dimensão mundial e de heróis com estatuto universal, mas onde ambos são pouco conhecidos e raramente celebrados.

Vem isto a propósito do 6.º Centenário da tomada de Ceuta (22 de Agosto de 1415), empreendimento militarmente notável que, além de ter permitido a conquista de um importante entreposto comercial e praça-forte do Norte de África, marcou o início da construção do primeiro império marítimo pluricontinental e plurioceânico, desencadeou o processo de globalização económica e inaugurou a revelação científica que conduziu ao conhecimento da verdadeira geografia da Terra!

Lamentavelmente, não só este relevante feito militar não mereceu o devido assinalamento, como os principais protagonistas e intervenientes naquela acção militar permaneceram praticamente ignorados, tão poucas foram as manifestações literárias e culturais que ocorreram por essa altura no nosso país.

Para melhor se perceber a razão fundamental desta persistente dificuldade nacional em celebrar os seus feitos e os seus heróis, ainda hoje não encontramos melhor explicação do que a apresentada há mais de 400 anos por Luís de Camões no Canto V d’Os Lusíadas, da estrofe 92 à 100, onde caracteriza as circunstâncias inerentes à subtil relação dos feitos militares e respectivos heróis, com as obras literárias e seus autores. Neste extracto do seu poema épico, Camões, depois de relatar o elogio feito por Vasco da Gama ao rei de Melinde, sobre a tenacidade dos idealizadores e executantes do império marítimo português, critica-os por desprezarem a poesia e os respectivos autores, facto que considera determinante, tanto para o pouco apreço reservado aos protagonistas, como para a fraca exaltação com que são recordados os momentos altos da História de Portugal. Embora esta censura de Camões seja muito objectiva e claramente consignada à poesia, para os efeitos do que se pretende demonstrar neste texto, parece-nos lícito alargá-la à prosa, visto que, no essencial, e como refere Ricardo Reis, ambas se constituem como expressões artísticas que se fundamentam na articulação de palavras e frases, com o fim de transmitir ideias com emoção. O que as distingue, quanto à forma, é o facto da poesia, para projectar, por palavras, uma ideia com emoção, recorrer a três instrumentos disciplinadores da exposição harmoniosa, isto é, o ritmo, a rima e a estrofe. Nestas circunstâncias, o desprezo a que Camões se refere, já no seu tempo abrangia todos os obreiros da literatura nacional, fossem eles poetas ou prosadores.

As estrofes 92 a 100 do Canto V d’Os Lusíadas, permitem perceber o pensamento de Camões sobre o pouco conhecimento e a rara celebração dos feitos com dimensão mundial e dos heróis com estatuto universal que fazem parte da História de Portugal, problema relativamente ao qual tece duas considerações arrebatadoras e outras tantas desassombradas advertências.

No essencial, considera o poeta que tais feitos eram de grandiosidade sublime e realizados por pessoas muito corajosas, e que poderiam ter sido amplamente conhecidos e celebrados se os seus heróicos protagonistas, para além de bons combatentes, nutrissem, igualmente, gosto pelas artes e pela literatura e apoiassem os poetas nacionais. Neste âmbito, ao cantar «E as armas não lhe impedem ciência», Camões considera que os líderes militares se devem interessar, também, pelo cultivo dos saberes, com o propósito de perpetuar, através da escrita, o mérito dos grandes feitos, porque, sem registo e divulgação, desaparecem os incentivos ao surgimento de novos heróis. Afirma, ainda, que não é por falta de gente notável que os portugueses são desconhecidos, mas por insuficiente valorização do culto das letras, razão que obsta à divulgação dos grandes feitos por eles praticados. Reitera esta opinião nos versos «Enfim não houve forte Capitão / Que não fosse também douto e ciente», concluindo que não basta ser um militar valoroso, capaz de cometer grandes feitos bélicos. Com efeito, para ficar conhecido e celebrado é preciso ter, igualmente, o dom de transmitir essas acções através da escrita, como fazem os heróis dos outros países, a quem não falta eloquência. Desta forma, considera que Portugal produz gente de enorme heroísmo e grande valia militar, mas que, por serem rudes e incultos, dificilmente saem da penumbra da História.

Nos versos «Não haverá, se este costume dura, / Pios Eneias nem Aquiles feros», o poeta, com agónica percepção do problema, adverte que se Portugal persistir em ignorar o reconhecimento, por via das letras, dos seus feitos com dimensão mundial e dos seus heróis com estatuto universal, no futuro não terá homens ilustres e corajosos. Reitera esta opinião quando canta «Tão ásperos os fez e tão austeros, / Tão rudes, e de empenho tão remisso, / Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso». Camões adverte, ainda, com desencantada lucidez, que caso se persista em Portugal no costume do desprezo pela literatura e pelos seus autores, não só não teremos homens ilustres e corajosos, como o embrutecimento dos espíritos delapidará os dotes e o natural talento literário dos portugueses.

Ora, chegados ao 6.º Centenário da tomada de Ceuta, este grande feito militar da nossa História passou quase despercebido e os seus heróis não mereceram a adequada celebração. Para isso terá contribuído o facto do país estar sufocado pelo intenso calor de verão e submerso na onda de trivialidades circunstanciais desta época do ano. Porém, também terão tido alguma relevância as continuadas posturas objecto das considerações arrebatadoras e das desassombradas advertências de Camões.

Perante este perseverante problema, bem faríamos nós, os portugueses de hoje, se inspirados no poeta e apelando à consciência nacional plasmada n’Os Lusíadas, cuidássemos para que nos estabelecimentos de ensino e nas datas relevantes, fossem evocados, num apelo de liberdade e esperança, os momentos privilegiados e as figuras exemplares da História de Portugal, actividade essencial para revitalizar as energias individuais e colectivas do nosso Povo. No caso concreto e específico das escolas superiores militares, seria muito importante reforçar os seus currículos académicos com o estudo das humanidades, onde os feitos bélicos com dimensão mundial e dos heróis nacionais com estatuto universal teriam o seu lugar relevante. Desta forma, acrescentar-se-iam elementos determinantes do saber e da motivação para os oficiais servirem a Pátria com lustre e bravura, tirando partido de uma simbiose perfeita entre a vida profissional e a vida intelectual, destinada a equilibrar as competências nos campos das letras e das armas, requisito que Camões expressou de forma literária eminentemente majestosa e monumental, através da expressão «numa mão a pena e na outra a lança».



2 comentários em “Portugal Nos Mares”

  1. Manuel Quintim diz:

    Texto tipicamente encontrado nos comentários das fotos do Ricardo Diniz, tão sonhador, tão utópico, tão ilusório, tão falso e completamente irrelevante.

  2. Vieira Filipe diz:

    Gostei do texto. Quanto à foto, apenas um comentário “Estamos a ficar… com uns anitos?”

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