Numa fortíssima pressão para resolver o conflito laboral do porto de Setúbal, a ministra do Mar admitiu ontem numa entrevista que a continuação da paralisação dos estivadores coloca em risco a própria existência do porto. Entretanto, a APAT veio apelar ao fim das greves nos portos de Setúbal e Lisboa e a advogada Rita Garcia Pereira considerou crime a substituição dos estivadores grevistas no porto setubalense
Porto de Setúbal

A ministra do Mar admitiu ontem que a falta de acordo entre estivadores e entidades patronais no porto de Setúbal pode colocar em causa o futuro deste porto. “Se continuarmos por este caminho, o porto de Setúbal deixará de ser viável”, colocando em risco empregos directos e indirectos, referiu Ana Paula Vitorino em entrevista ao jornal PÚBLICO e a Rádio Renascença.

Na mesma entrevista, a ministra lembra que apesar de representar apenas 6% da movimentação de carga no contexto nacional (o porto de Sines movimenta mais de 50% e o de Leixões 23%), o porto de Setúbal “tem uma importância estratégica porque é um porto industrial, que movimenta matérias-primas e produtos acabados de alto valor (temos a Autoeuropa, a Secil, a Navigator, a Siderurgia Nacional”.

Em todo o caso, e face à paralisação em curso, a ministra considera que estão a ser tomadas “as medidas necessárias para que os outros portos nacionais possam receber todas as cargas que eram até agora movimentadas em Setúbal”, acrescentando que “em matéria de ro-ro, é possível em Leixões, Aveiro, em Lisboa, em Sines e em Portimão, que tem excelentes condições de parqueamento”. O porto de Sines não será recomendável para viaturas ligeiras devido ao piso de gravilha, pelo que se está “a fazer um novo pavimento”.

Uma preocupação que se prende com o facto conhecido de Portugal estar a perder quota de movimento portuário para portos espanhóis e que a ministra reconhece. Ana Paula Vitorino recordou que até ao final desta semana “as rotas que costumam utilizar o porto de Setúbal se reduzam 70%.” Pelo que o Governo estará a fazer “tudo por tudo para que armadores que deixem de utilizar Setúbal por causa da greve utilizem outros portos nacionais, como Leixões (que já está em sobre-ocupação) e Sines”, refere a ministra na mesma entrevista.

 

A questão parlamentar

 

Entretanto, o conflito laboral no porto de Setúbal induziu o PCP, que tem defendido os estivadores de Setúbal e assumido posições próximas do Sindicato dos Estivadores e Actividade Logística (SEAL), a requerer a presença de Ana Paula Vitorino na Assembleia da República para prestar esclarecimentos sobre o assunto aos deputados. Uma audição parlamentar que, segundo notícias vindas a público, só deverá ocorrer depois do Natal, por questões de agenda. Antes disso, segundo terá referido o deputado Hélder Amaral, do CDS/PP, à LUSA, serão ouvidos o SEAL e a Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra (APSS).

Ainda no plano parlamentar, Catarina Martins, deputada e líder do Bloco de Esquerda (BE), partido que já pediu a demissão da ministra do Mar por causa desta questão pela voz do deputado Heitor de Sousa, visitou esta semana os estivadores do SEAL no porto de Setúbal, onde criticou as empresas que contratam trabalhadores ao dia e ao turno e apelou ao Governo para que não as deixe funcionar desta forma e às empresas para que regressassem à mesa das negociações, dado que os estivadores lhe tinham manifestado disponibilidade para retomarem o diálogo.

Sobre os dois deputados do BE, Ana Paula Vitorino referiu na entrevista: “por que é que só se lembraram deste assunto agora? Houve mais de 100 pré-avisos de greve deste sindicato”. Já sobre o apoio do BE e do PCP a sindicatos, a ministra referiu que “há uns que tentam resolver o conflito defendendo os trabalhadores e os postos de trabalho e há os outros que se põem numa situação de dizerem sistemática e recorrentemente que pedem a demissão dos ministros”.

Ana Paula Vitorino referiu também a este propósito que “do ponto de vista político, tem que haver uma clarificação sobre que sindicatos apoiam, uma vez que existe um conflito entre sindicatos e também, não onde estavam no 25 de Abril, mas nos anos em que se formou este problema no porto de Setúbal”. E sublinhou que “gostava também se saber o que esses partidos propõem para a resolução do problema”, porque “no passado, não se pronunciaram sobre esta matéria”.

 

APAT apelou ao diálogo

 

Também esta semana, a Associação de Transitários de Portugal (APAT) veio pronunciar-se sobre o conflito laboral do porto de Setúbal, ao qual associou o do porto de Lisboa, apelando a que se encontre uma “solução urgente para as greves dos estivadores em Setúbal e Lisboa”, conforme refere a associação em comunicado.

“Quem tem responsabilidade nesta matéria não pode ficar passivo e assistir à deterioração da actividade portuária em Lisboa e Setúbal porque se entende manter uma greve e uma recusa à prestação do trabalho, sem qualquer fundamento, pois pelo que sabemos esteve quase tudo acertado para pôr termo à paralisação dos trabalhadores precários no porto de Setúbal”, referiu a APAT.

Disse também a APAT que “a instrumentalização dos estivadores e do Direito Constitucional à greve não é ético, nem tão pouco uma atitude responsável, pois o direito à greve não deve ser usado para a consecução de objectivos e agendas pessoais e políticas, em detrimento de uma economia já de si frágil e que dificilmente aguenta este desrespeito de alguns pelos outros”.

A associação lembrou que “se em Setúbal se fala essencialmente na AutoEuropa, no porto de Lisboa há contentores que aguardam mais de 30 dias para embarcar e nas auto-estradas portuguesas muita carga a viajar para outros portos e apelou aos “responsáveis políticos para que se ponha termo a esta situação, sob pena de termos todos um Natal menos feliz”.

 

Solidariedades com os estivadores de Setúbal

 

A paralisação dos estivadores de Setúbal foi também ontem objecto de um artigo do jornal I, a propósito do impacto que está a ter na fábrica de montagem de automóveis da Autoeuropa de Palmela, que depende daquele porto para escoar a sua produção. No artigo, o jornal referiu, tal como o nosso jornal já mencionara, que os estivadores do porto de Setúbal estão a ter a solidariedade dos trabalhadores da Autoterminal (terminal portuário) em Emden, para onde foram transportados os veículos da Autoeuropa no navio Paglia, em Novembro, e da Volkswagen local.

Segundo o jornal, os trabalhadores da Autoterminal não estarão a carregar os motores destinados à Autoeuropa e que são necessários à produção da fábrica. Diz também o jornal que os trabalhadores estarão a dificultar o desembarque dos veículos transportados pelo Paglia para Emden. Fonte próxima do processo admitiu ao nosso jornal que a solidariedade dos trabalhadores de Emden com os de Setúbal é real, mas que não terá chegado ao ponto de obstruir o desembarque dos veículos na Alemanha. E fonte da Autoeuropa citada ontem pela RTP terá desmentido que o desembarque dos veículos em Emden tenha sido impedido.

O embarque dos veículos da Autoeuropa para Emden em Setúbal, realizado em Novembro com recurso a estivadores de proveniência desconhecida mereceu a contestação dos estivadores eventuais do SEAL que trabalham habitualmente no porto e foi ontem objecto de um artigo da advogada Rita Garcia Pereira no blogue do SEAL, O Estivador.

Nesse artigo, a advogada considera que a substituição de grevistas praticada pela empresa de trabalho portuário de Setúbal durante essa operação de embarque de veículos no porto de Setúbal, além de consubstanciar uma contra-ordenação, é crime.

A favor da sua tese, Rita Garcia Pereira cita numerosa doutrina e um Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16 de Dezembro de 2015, segundo o qual I – O artº 535º do Código de Trabalho, sob a epígrafe ‘Proibição de substituição de grevistas’, consagra, no nº 1 do normativo que o empregador não pode, durante a greve, substituir os grevistas por pessoas que, à data do aviso prévio, não trabalhavam no respectivo estabelecimento ou serviço, nem pode desde essa data admitir trabalhadores para aquele fim. II – A violação desta norma constitui contraordenação muito grave, nos termos previstos pelo nº 3 do referido preceito.

A advogada nota igualmente que “o objectivo que levou o legislador a prever a proibição de substituição de trabalhadores grevistas” é “facilmente identificável” e consiste na protecção da “consistência prática do direito à greve, como a doutrina em geral observa”. E refere que “ainda que se viesse a entender que os eventuais não poderiam fazer greve”, hipótese que não subscreve, “então o problema da substituição de grevistas mantém-se, na medida em que os elementos contratados foram, também, substituir trabalhadores em greve ao trabalho suplementar”.

No mesmo blogue, ontem, o SEAL divulgou outra acção de solidariedade para com os estivadores de Setúbal: um arraial popular promovido pelos estivadores, para o qual convidam a população de Setúbal e “todos os que estejam solidários com a sua luta”, “cujos lucros serão canalizados para o Fundo de Solidariedade com os Estivadores Precários do Porto de Setúbal”.



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