Em conversa com o nosso jornal, Raquel Gaspar, o principal rosto da Ocean Alive, falou de si, da organização, dos projectos e dos sonhos inspirados pelo mar, uma das suas grandes paixões
Raquel Gaspar

“Deito-me a trabalhar, acordo a trabalhar”, este é testemunho da vencedora do prémio Terre de Femmes, da Fundação Yves Rocher, de 10 mil euros, e do prémio FAZ – Ideias de Origem Portuguesa, da Fundação Calouste Gulbenkian, de 25 mil euros, números que constituem uma parte do financiamento da Cooperativa de Raquel Gaspar – Ocean Alive -, cujo objectivo se relaciona com a limpeza dos plásticos do Estuário do Sado.

Um objectivo que também concretiza com as receitas das actividades do programa educativo (venda de actividades a escolas, municípios e empresas) e da Mariscar Sem Lixo, campanha que visa realizar acções mensais de limpeza das margens do Estuário do Sado, acções de sensibilização directa à comunidade piscatória e criar uma rede de stakeholders locais que pretendem evitar o lixo da mariscagem, patrocinada pela Fundação Oceano Azul e pelo Oceanário de Lisboa.

Raquel Gaspar nasceu numa aldeia de Leiria, Colmeia, e sempre gostou da natureza. “Eu passava muito tempo a andar de bicicleta. Tive sorte porque toda a aldeia era o meu recreio”, relembra Raquel, que afirma que ainda hoje adora andar de bicicleta, algo que a acalma e inspira tanto como estar debaixo de água – a sua grande paixão – com os animais marinhos.

“Eu andava muito sozinha e gostava muito do silêncio e de me isolar e de ficar no rio a ouvi-lo. Não tinha ligação com o mar, excepto nas férias, até ao dia em que começaram os episódios do Costeau, e a partir desse dia eu largava o meu namorado, aos Domingos, para ir ver o Costeau. Aí percebi que tinha de trabalhar no mar. O meu primeiro sonho foi viver no mar e consegui realizá-lo ainda como estudante, fui trabalhar para os Açores com a IFAW (International Fund for Animal Welfare). Eu era a única portuguesa da tripulação, vivíamos a bordo de um veleiro e a minha função era falar com os habitantes locais. A IFAW estava ali para mostrar aos açorianos como o fim da caça à baleia era uma oportunidade para o Wale Watching, que hoje é de facto a grande riqueza dos Açores. Eu estive na origem disso e acho que foi esse mar que vivi, que respirei e que está dentro de mim”, refere.

Entretanto, por razões familiares, a bióloga marinha voltou para o Estuário do Sado, onde já tinha feito o estágio de licenciatura, e mais tarde fez o doutoramento com os golfinhos. Teve três filhos, foi contadora de histórias no Oceanário a contar a Menina do Mar, escreveu livros, dedicou-se à literacia dos oceanos e a projectos pedagógicos em museus. “Eu era contadora de histórias, sempre vivi no meu mundo pequenino, que é o que eu gosto”, afirma Raquel.

 

Como nasceu a ideia

 

Mas a vida dá voltas e nessa sua volta para os golfinhos do Sado, o doutoramento onde criou um programa de monitorização possuía uma grande questão: o que está a acontecer à população e o que é que podemos fazer no futuro? E a bióloga marinha explica: “analisei 20 anos de dados da população – quantos animais há todos os anos, quantos nascem, quantos morrem, qual é a sobrevivência das crias, dos juvenis, trabalhei com dinâmica populacional e fiz modelos. E o modelo para tirar a população do declínio, pois isto é um jogo, era se conseguíssemos proteger o habitat, que são as pradarias marinhas, dando-lhes melhores condições de sobrevivência”.

Foi entretanto que percebeu que tinha que dar o salto. E assim criou a Ocean Alive – uma cooperativa que tem como objectivo proteger as pradarias marinhas do Estuário do Sado, transformando o conhecimento das pessoas, envolvendo a comunidade piscatória e a comunidade do estuário na transformação de comportamentos, dando-lhes oportunidades, seja através das campanhas de limpeza, seja através de programas educativos.

A Ocean ALive tem três eixos – o Programa Educativo (com escolas, turistas e empresas), a campanha Mariscar Sem Lixo e terá um programa de Monitorização das Pradarias Marinhas do Estuário, com as pescadoras e os cientistas, que é o grande sonho para 2018, para o que ambiciona conseguir financiamento para poder arrancar com este programa.

A primeira acção da criadora desta ideia foi em 2016. “Eu lembro-me de que estava sozinha nisto e fiz duas directas seguidas, e foi a partir de um vídeo que eu, desesperada, gravei a explicar o problema, que se geraram muitas visualizações e conseguiram-se os primeiros 30 voluntários”. Dois dos quais já criaram uma Fundação, que é a Few for Planet. Desde então têm pessoas que as acompanham.

Hoje em dia, “precisamos de crescer para ter mais recursos humanos, mas também temos de fazer mais”, afirma. “Sinto que hoje em dia há muitas pessoas desta comunidade que confiam em mim e portanto é um barco que não posso mais abandonar”, revela Raquel Gaspar, que vive hoje em dia ao computador e não no mar, como era habitual, a estudar os golfinhos do Sado.

 

Porquê o Estuário do Sado?

 

“É o estuário mais rico em biodiversidade do nosso país, é por isso que é o único que tem uma comunidade de golfinhos residente, e tem um tesouro debaixo de água – as pradarias marinhas – que são dos habitats que mais serviços ecológicos nos dão, nomeadamente, do sequestro do carbono. São o terceiro habitat do planeta com mais capacidade de eliminar o dióxido de carbono da atmosfera e selá-lo no fundo oceânico. Protege as praias e para aquela comunidade e para os golfinhos as pradarias marinhas são o habitat berçário da vida marinha, onde os peixes, marisco, chocos e outros animais marinhos põem os seus ovos e as crias nascem, ficando ali abrigadas e protegidas. Alimentam-se e crescem até poderem, depois, soltar-se e ir à sua aventura”, esclarece.

“Para além disso, tem uma comunidade piscatória única no país, uma mulher um homem no barco – há casais pescadores, há uma comunidade piscatória local, e temos tudo o que os outros têm – indústria, turismo, uma cidade. Acho que é o sítio ideal para fazer crescer um projecto de crescimento do oceano”, explica Raquel Gaspar.

 

Um dos episódios mais emblemáticos da sua vida

 

A bióloga marinha, de 48 anos, vive em Azeitão, na Serra da Arrábida, com os filhos, uma das grandes fontes de inspiração. Um dos momentos mais importantes da sua vida foi o salvamento de um golfinho, o Asa. “Porque estava grávida da minha filha, numa gravidez de risco, na qual tive de ficar seis meses deitada; e um dia estava no hospital Santa Maria e telefonaram-me a dizer que o Asa estava em perigo, tinha encalhado, e portanto tive de orientar o salvamento deste animal, com uma equipa fantástica de pessoas que deram tudo e conseguimos salvar este animal. Foi resgatado de helicóptero, transportado para um sitio do estuário e viveu mais 16 anos. Acho que foi um dos episódios mais emblemáticos da minha vida, depois fiquei mais 17 dias no hospital em risco de perder a Ísis, a minha filha, mas correu tudo bem. Hoje a Ísis há-de ser médica obstetra”, conta Raquel Gaspar ao Jornal da Economia do Mar.

 

Ir mais além do Estuário do Sado?

 

“Sim, mas precisamos de mais meios. O nosso trabalho é para inspirar outros, e assim só por isso estamos a ir mais além. A Ocean Alive para escalar precisa de mais meios. Mas o nosso trabalho só terminará ali [no Estuário do Sado] quando tivermos uma história com princípio meio e fim. Para já temos muito por conquistar. Acho que ainda estamos no início desta história”, admite Raquel Gaspar.

 

O futuro da Cooperativa e como pode ser apoiada

 

Raquel Gaspar tem um projecto em mente, em que a Universidade do Algarve, através do CCMAR (Centro de Ciências do Mar), seria responsável pela monitorização científica do impacto que o mesmo teria nas pradarias, bem como pela criação de um mapeamento das pradarias. Este projecto tem três intervenientes: a comunidade piscatória – “entregamos GPS às pescadoras e elas quando estão a pescar e vêm as pradarias dão-nos pontos de localização que são transmitidos à Universidade do Algarve, que criará um mapa”. Para além disso, é necessário ir mergulhar, confirmar no terreno a dimensão das manchas, que será feito com estudantes da Summer School da Ocean Alive, o Ocean Alive Camp, e também com estudantes da Universidade do Algarve.

A Cooperativa está associada a dois projectos: o projecto Nacional Escola Azul e o projecto Educar no Mar, da Câmara Municipal de Setúbal, que permitem que a Ocean Alive tenha um papel educativo junto das crianças de Setúbal e também na formação de professores. Raquel Gaspar admite o seu sonho: “para 2018, dia 8 de Junho, dia Mundial do Oceanos, dada a experiência e complexidade de tudo o que já passámos, sonhamos que se consigam meios para ter crianças de todos os municípios a limpar o Estuário do Sado”.

A Campanha Mariscar Sem Lixo todos os meses faz acções com voluntários. Em 2018 tem quatro grandes acções – a de dia 18 de Feverero, na Carrasqueira, e do Possanco, a da Sexta-feira, 30 de Março, com a comunidade piscatória, que é uma grande festa, e também entre os dias 11,12 e 13 de Agosto, haverá uma grande acção de limpeza e há-de haver uma quarta, no segundo semestre, no Porto das Baleias, com a comunidade piscatória lúdica do Estuário do Sado.

Como cooperativa, a organização não tem fins lucrativos, recebe donativos e passa recibos de donativos. Sendo composta por voluntários, também é uma óptima forma de ajudar. “Por exemplo, precisamos todos os meses de voluntários para limpar o Estuário do Sado e para nos ajudar nas acções de sensibilização aos mariscadores”. Em termos de recursos humanos especializados, neste momento os da Cooperativa só chegam para aquilo que fazemos, não nos permitem crescer, por isso precisam de um investimento social que permita ter mais recursos humanos, para que possam escalar e colocar em marcha o terceiro eixo que é a monitorização das pradarias marinhas.

A acção que decorreu no Domingo, 18 de Fevereiro, nos Portos palafíticos da Carrasqueira e do Possanco, no Estuário do Sado, que recebeu em donativos 3 mil euros (para poderem providenciar transportes, almoço e t-shirts para os voluntários) contou com 219 voluntários, número recorde até hoje, e conseguiu retirar do estuário do Sado 7,494 toneladas de lixo.

 

Lixo Não reciclável – 6.614kg:

– 2.200kg de artefactos de pesca, maioritariamente redes

– 1.600kg de madeira

– 1.034kg de pneus

– 1.780kg de lixo indiferenciado

 

Lixo Reciclável – 880 Kg:

– 720Kg sobretudo de embalagens de plástico, havendo algumas embalagens de metal

– 160kg incluíam embalagens de vidro, metais, equipamentos eléctricos e electrónicos fora de uso, acumulador de chumbo e bateria usada.

 

Com o patrocínio do Oceanário de Lisboa e da Fundação Oceano Azul e com a parceria da Associação da Comunidade Piscatória da Carrasqueira (co-organizador), da Câmara Municipal de Alcácer, da Junta de Freguesia da Comporta, da Herdade da Comporta, da Reserva Natural do Estuário do Sado e da Ambilital, esta acção nasceu pela necessidade da própria comunidade que viu o estuário, após ter ficado limpo, deteriorar-se com o passar do tempo, com o vento e o mar, que todos os dias trás lixo, sobretudo para a Margem Sul (porque o regime de ventos dominante é de norte para sul, o estuário naquela zona tem plantas do sapal, que quando a maré desce, retêm o plástico que fica preso nas plantas e funciona como armadilha).

“Importa destacar que pela primeira vez fechámos as inscrições e com a presença de muitas famílias, tendo participado mais de 50 crianças que também limparam, e para além dos voluntários locais e da península de Setúbal, houve participantes de Aveiro, Almeirim e de Mafra”, refere Raquel Gaspar. Na totalidade, 8,2 km de sapal da Reserva Natural do Estuário do Sado foram limpos, em zonas de difícil acesso, graças aos meios de transporte de todo o terreno, disponibilizados pelos nossos parceiros.

 

 

 

 



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