Apesar de já ter produzido resultados importantes, a investigação sobre processos de fumagem líquida carece de financiamento para a sua continuação. Quanto ao mercado, ainda não recorre com frequência a este processo relativamente às espécies testadas pelo IPMA.
Fumo Líquido

Embora solicitado no âmbito do programa MAR 2020, ainda não foi disponibilizado financiamento para a continuação da investigação sobre Preparação de Dourada, Robalo, Corvina, Tainha e Ostras Usando Fumo Líquido, entretanto suspensa, realizada pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

A suspensão dos trabalhos desta investigação, que já produziu alguns resultados, foi referida por Rogério Mendes, investigador do IPMA, durante o XII Seminário de Aquacultura, que decorreu no passado dia 5 de Maio, em Setúbal, promovido pela Associação Portuguesa de Aquacultores (APA).

Até agora, a “investigação foi maioritariamente feita como complemento, na área da transformação e aproveitamento, de projectos de investigação dedicados sobretudo à produção de novas espécies de aquacultura, como sejam o caso da corvina e tainha e também valorização do polvo da costa portuguesa”, esclareceu-nos Rogério Mendes.

Nesse sentido, “o financiamento teve origem nos projectos PROMAR: AQUACOR, VALPROTAI e POLQUAL e teve co-financiamento comunitário, que variou entre 60-75%”, reconheceu-nos o investigador.

 

Vantagens

 

Na apresentação que fez da investigação, Rogério Mendes sublinhou os objectivos desta investigação: valorizar as espécies de aquacultura, diversificar as apresentações do pescado de aquacultura, responder a solicitações dos consumidores por novos produtos e optimizar o processo de fumagem de espécies de aquacultura com utilização de fumo líquido.

Tradicionalmente e desde há muito, a fumagem (que tecnicamente é o “processo através do qual os compostos voláteis provenientes da combustão térmica de madeira penetram os tecidos da carne ou do pescado”, segundo um estudo do IPMA sobre a matéria, de 2016) é usada na conservação dos alimentos, combinando a redução da actividade da água do produto com a absorção de componentes bactericidas e anti-oxidantes do fumo.

Benefícios anti-microbianos, anti-oxidantes e sensoriais (aroma e cor) são as grandes vantagens da fumagem. Cada vez mais, porém, é menos usada na conservação dos alimentos e mais para lhes conferir aromas e paladares característicos. Conforme explicou Rogério Mendes, existem vários processos: a quente, a quente com secagem adicional, a frio, electroestática e com fumo líquido (aroma de fumo).

Na opinião do investigador, a fumagem com fumo líquido tem a vantagem de oferecer baixo risco para a saúde (o uso directo do fumo de madeira gera hidrocarbonetos aromáticos policíclicos potencialmente cancerígenos, “como é o caso dos benzopirenos, em resultado da combustão a altas temperaturas da matéria orgânica”, refere o citado estudo do IPMA), ser um processo de fácil controlo e não requer produção de fumo na unidade de transformação.

“Este processo de fumagem envolve uma tecnologia de fácil aplicação e com baixos custos de investimento. A utilização de fumo líquido na fumagem não necessita de um fumeiro e o processo é de fácil controlo, não exigindo pessoal com longa experiência de fabrico tal como o método tradicional. Neste processo, o produto não é exposto diretamente ao fumo, havendo um melhor controlo dos constituintes do fumo”, refere o estudo do IPMA, onde se acrescenta que, de acordo com um regulamento da Comissão Europeia, a aplicação de fumo líquido é “geralmente menos prejudicial para a saúde do que o processo de fumagem tradicional”.

 

O processo

 

Durante a apresentação, Rogério Mendes sintetizou o processo de fumagem líquida da dourada, do robalo, da tainha e da corvina, com base nos ensaios realizados pelo IPMA. Em primeiro lugar, o pescado é colocado em salmoura a 5% (15 minutos), a que se segue uma drenagem durante 10 minutos.

Depois, vem a secagem a 40º, durante 60 minutos, com ventilação a 80% e humidade a 50%, seguida de arrefecimento à temperatura ambiente durante 15 minutos. Em seguida, procede-se a uma imersão em fumo líquido AFS 12 SOL (um código de fumo líquido derivado de nogueira e carvalho fornecido pela Amcan Ingredients Europe) entre 10% e 20% durante 30 segundos, após o que se passa para uma drenagem durante 10 minutos, seguida de uma secagem a 70º com ventilação de 80% e humidade de 50%, arrefecimento durante 60 minutos, embalagem em vácuo e refrigeração/congelação.

As ostras, também testadas, obedeceram a um processo próprio que passa pela separação mecânica do miolo, que depois é lavado e drenado, sujeito a choque térmico (90º) por 40 segundos, arrefecido, imerso numa solução de AFS 10 (outro código de fumo líquido derivado de nogueira e carvalho) a 5% por 30 segundos, novamente drenado e seco em estufa de ar forçado a 80º com 60% de humidade relativa por 15 minutos. Finalmente segue-se a embalagem das ostras fumadas em vácuo e conservação em refrigerado de 5º a 8º.

De acordo com Rogério Mendes, no caso dos peixes, “a fumagem permitiu obter produtos de elevada qualidade com potencial para a diversificação das produções de aquacultura, podendo ser comercializados em embalagens a vácuo refrigeradas ou congeladas”. O estudo do IPMA concluiu que “a uniformidade da cor, a textura e o aroma suave a fumo foram as características mais valorizadas” e que as “as diferentes espécies de aquacultura fumadas tiveram avaliações distintas, tendo a tainha merecido a preferência, entre os peixes, devido em particular à sua textura”.

O estudo também permitiu tirar conclusões sobre o rendimento obtido com a aplicação deste processo a estas espécies. Em termos globais, ou seja, a quantidade de peixe fumado obtido a partir de um peixe inteiro, o rendimento foi de 18,7% no caso da dourada, 17,4% no caso do robalo, 14,3% no caso da corvina e 14,4% no caso da tainha.

O rendimento de filetagem, ou seja, a quantidade de filetes em peso com que ficamos a partir de um peixe inteiro após a aplicação do processo, foi de 44,9% na dourada, 42,2% no robalo, 41% na tainha e 39,6% na corvina. Já o rendimento de fumagem, isto é, a quantidade de peixe fumado obtida a partir de 100 gramas de filete, foi de 41,7% no caso da dourada, 41,2% no robalo, 36% na corvina e 35,2% na tainha.

No caso das ostras, a análise sensorial permitiu concluir que o resultado da fumagem líquida deu origem a produtos suculentos, com o músculo adutor macio e mastigável, um sabor suave a fumo e uma elevada apreciação global.

O estudo do IPMA também conclui pelos resultados de ensaios com fumagem líquida sobre o polvo. Ali se refere que “o processo de preparação de polvo fumado com fumo líquido é relativamente simples e pode ser realizado com equipamentos disponíveis no mercado, de fácil aplicação e com baixos custos de investimento”, acrescentando-se que “o produto obtido pode ser comercializado com diversas apresentações, tanto em refrigerado como em congelado” e que “o polvo fumado pode constituir um novo tipo de produto pronto a consumir e com variadas utilizações culinárias”.

A Amcam Ingredients Europe é um departamento da Dempsey Corporation, uma empresa com sede em Toronto, no Canadá, dedicada à produção de ingredientes para sabores, alimentos e diversos produtos (indústria, cosmética, tintas e revestimentos, entre outros) e que apoiou a realização do estudo.

 

Porque não outros produtos?

 

Apesar destas vantagens e de já existir informação pública sobre estes ensaios, Rogério Mendes admitiu-nos que o mercado ainda não recorre a esta solução. “O mercado em Portugal procura sobretudo pescado fresco, pelo que a procura de produtos fumados é muito menor”, explicou. “Se adicionarmos a esta situação a grande visibilidade que tem o salmão fumado, verificamos que talvez não reste muita apetência da indústria para investir em novos produtos”, acrescentou.

No seminário da APA, várias foram as questões sobre a aplicação do processo ao salmão. Questionado pelo nosso jornal sobre o tema, Rogério Mendes respondeu-nos que “os produtos fumados de aquacultura com fumo líquido, seguindo a tecnologia que nós divulgámos, são produtos distintos do salmão, que é fumado a frio, e não devem ser considerados concorrentes deste”, pelo que “só uma boa divulgação destas alternativas pode levar os consumidores a comprar e os industriais a investir na sua produção”.

Sobre este assunto, o investigador disse-nos ainda que “as reclamações vieram sobretudo em relação à truta e enguia” e que “o salmão tem um aproveitamento já muito definido e estabilizado”, acrescentando que “a não experimentação com outras espécies prendeu-se sobretudo com uma questão de falta de tempo e também com o facto de os trabalhos realizados estarem enquadrados em projectos de investigação de espécies de aquacultura muito específicas”.

Em todo o caso, afirmou-nos, “o IPMA devidamente financiado, tem todas as condições para desenvolver investigação com qualquer outra espécie de aquacultura e está nas nossas metas ir ao encontro dos pedidos formulados”.

 



Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

«Foi Portugal que deu ao Mar a dimensão que tem hoje.»
António E. Cançado
«Num sentimento de febre de ser para além doutro Oceano»
Fernando Pessoa
Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto.
Vergílio Ferreira
Só a alma sabe falar com o mar
Fiama Hasse Pais Brandão
Há mar e mar, há ir e voltar ... e é exactamente no voltar que está o génio.
Paráfrase a Alexandre O’Neill