CNUDM

O ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, reconheceu ontem que “os esforços de codificação do Direito do Mar foram, em grande medida, influenciados por concepções que hoje nos colocam dificuldades”, durante a sessão de abertura do seminário Portugal e o Novo Acordo de Implementação da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) sobre Conservação e Utilização Sustentável da Biodiversidade Marinha em Áreas além da Jurisdição Nacional”.

Sublinhando que os oceanos são um “elemento fundamental e estruturante da nossa política externa”, Augusto Santos Silva considerou que as bases estabelecidas pela CNUDM “não bastam para gerir ameaças emergentes além das fronteiras nacionais, onde o tipo de desafios e as possibilidades da respectiva gestão se afastam significativamente da abordagem padrão edificada para as áreas de jurisdição nacional”.

Para o ministro dos Negócios Estrangeiros, tais desafios “exigem uma gestão não territorializada, ou seja, não limitada a um espaço de soberania ou jurisdição”, e nessa linha requerem “um esforço de cooperação e coordenação entre distintas jurisdições”, ou seja, entre diversos Estados. Entre os desafios identificados por Augusto Santos Silva constam a acidificação dos oceanos, a poluição marinha, a destruição de stocks de pesca e a degradação de ecossistemas marinhos.

 

O processo

 

O seminário que ontem começou e que prossegue hoje, insere-se na preparação de uma série de recomendações para a elaboração de um tratado sobre a protecção do alto-mar, também designado no plano marinho por área além da jurisdição nacional (área beyond national jurisdiction, ou ABNJ) que constitua um novo instrumento jurídico internacional regulador da conservação e utilização sustentável da biodiversidade marinha nesta área.

Em 2015, na sequência de uma década de debates no âmbito de um grupo de trabalho ad-hoc das Nações Unidas para as questões da biodiversidade nas ABJN, os Estados decidiram abrir negociações para criar um novo instrumento juridicamente vinculativo sobre esta matéria no quadro da CNUDM. Nesse ano, a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) adoptou a resolução 69/292, que instituiu um Comité Preparatório mandatado para elaborar recomendações a apresentar à própria AGNU, no prazo de dois anos.

Até ao momento, o comité já reuniu duas vezes: uma, entre 28 de Março e 8 de Abril de 2016, e outra, entre 29 de Agosto e 12 de Setembro de 2016. Segundo apurámos, estão previstas mais duas reuniões, em Março/Abril deste ano e em Julho também deste ano. No final do ano, as recomendações serão apresentadas à AGNU, que definirá, em Setembro de 2018, a data para a realização de uma conferência inter-governamental destinada a redigir o texto final do acordo.

Portugal participa no comité integrado na representação da União Europeia (UE). Segundo apurámos, embora Portugal esteja alinhado com o posicionamento geral da UE no quadro das negociações em curso, existem posições de que não abdica.

O seminário que agora decorre em Lisboa, com a presença de representantes de 40 Governos e especialistas, destina-se a analisar os resultados das duas reuniões anteriores e a encorajar o debate e a reflexão sobre o que foi alcançado e os desafios que subsistem. Tem como objectivo encontrar soluções nas questões que permanecem sem convergência e abrir caminho para as próximas duas reuniões.

 

Os desafios

 

Na origem deste processo estão desafios decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico, da crescente procura de recursos marinhos e da ausência de regulamentação adequada aplicável às ANBJ dos oceanos, que tornam a CNUDM um instrumento insuficiente para os enfrentar. Pelo que se impõe um Acordo de Implementação da CNUDM sobre a Conservação e Utilização Sustentável da Biodiversidade Marinhas em Áreas para Além da Jurisdição Nacional.

Até hoje, desde que foi adoptada, a CNUDM conheceu somente dois acordos de implementação destinados a colmatar lacunas de aspectos insuficientemente abrangidos pela Convenção. Um foi o Acordo Relativo à Implementação da Parte XI da Convenção, que estabelece a Área (termo pelo qual também é conhecida a ANBJ) e está relacionado com mineração no mar profundo. Outro foi o Acordo das Nações Unidas sobre Stocks de Pescado, de 1995, relativo a stocks de pescado altamente migratórios.

Recorde-se que a CNUDM foi negociada nos anos 70 do século passado, adoptada em 1982 e entrou em vigor em 1994, ano em “começavam a ser visíveis e mais bem compreendidos vários desafios emergentes, os quais ameaçam os oceanos e os recursos marinhos e cuja gestão está, pelo menos em parte, desligada da ideia de território e de soberania”, conforme referiu ontem Augusto Santos Silva.

Quando foi negociada a CNUDM, a comunidade internacional tinha uma compreensão escassa da biodiversidade do alto-mar, do contributo que ela presta à vida no planeta, como a produção de oxigénio ou o sequestro de carbono, e desconhecia ainda o potencial tecnológico para explorar em profundidade as mais remotas e hostis zonas dos oceanos que se concretizaria décadas depois. Termos como genética e biodiversidade não constam da Convenção.

Segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros, o novo acordo “pode, partindo da base fundamental e estruturante da Convenção, não só desenvolver ferramentas que permitam responder aos problemas emergentes, mas também forjar uma nova abordagem mental, assente no Direito, ajustada às especificidades dessas áreas”.

De acordo com a resolução 69/292 das Nações Unidas, durante os dois anos de mandato do Comité Preparatório, os Governos deveriam identificar os aspectos susceptíveis de permitir alcançar um acordo. Tais aspectos devem incorporar instrumentos de gestão das ABNJ, incluindo as Áreas Marinhas Protegidas (AMP) e reservas, avaliações de impacto ambiental, recursos genéticos marinhos, incluindo questões relacionadas com a partilha de benefícios, e capacidade para criar e transferir tecnologia marinha.

Actualmente, a ABNJ representa 2/3 do oceano e quase metade da superfície da Terra. Além disso, menos de 1% da ABNJ é considerada AMP, integrando o Santuário de Pelagos (área mediterrânica gerida pela França, Itália e Mónaco com o objectivo de proteger mamíferos marinhos), as Órcades do Sul e a zona coberta pela Convenção OSPAR no Mediterrâneo Nordeste. Se considerarmos zonas costeiras e zonas no âmbito das Zonas Económicas Exclusivas, apenas 3,4% dos oceanos são AMP.



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